Análise técnica do art. 28, da LD (Leia todo o texto, clique aqui)

RESENHA 03



LEIS PENAIS ESPECIAIS

1.     Condutas do artigo 28, da LD – tipo misto alternativo

O artigo 28, da LD, possui cinco condutas distintas, a saber: adquirir, guardar, trazer consigo, ter em depósito, transportar. A prática de uma ou mais dessas condutas sujeita o agente à imputação de um único crime, pois o artigo 28 da LD trabalha com o conceito de “crime de ação múltipla”. Assim, mesmo que o sujeito “adquira” e posteriormente “transporte” a droga para consumo pessoal, em regra, ser-lhe-á imputado um só crime, não se tratando, em regra, de concurso de crimes.

De acordo com a sistemática penal, caso o agente pratique mais de uma conduta descrita no tipo, o juiz deverá levar em conta tal circunstância na 1ª fase de aplicação da pena, ou seja, quando estiver analisando as circunstâncias judiciais (Artigo 59, do CP), mais precisamente na análise da culpabilidade.

Observa-se que a conduta “consumir” droga não é arrolada no núcleo de condutas do artigo 28, da LD, ou seja, consumir drogas não é crime. O que o artigo 28 repreende são outras condutas conforme ressaltado. Desse modo, o agente flagrado “consumindo” droga não responderá pelo consumo em si, mas certamente será responsabilizado pelo porte, já que a atividade “consumir” não integra o rol de condutas proibidas no caput do artigo 28 da LD. O que a lei não descreve não é crime!

E se uma pessoa, por exemplo, um amigo do agente, portanto, pessoa próxima, adquira a droga – sem o conhecimento daquele – e ambos passem a consumi-la? Os dois respondem pelo crime do artigo 28, da LD?

Neste caso específico, como não houve a anuência do agente, aliás, o mesmo sequer sabia que seu amigo adquiriu e estava portando drogas para consumo pessoal, não há como responsabilizar ambos pelo delito de porte para consumo pessoal. No caso em tela, o agente que não tinha conhecimento de nada não pode ser apenado, com fundamento no art. 28, pois ele apenas “consumiu” a droga, e, como visto, o ato de “consumir droga” não está arrolado entre as condutas proibidas no caput do artigo 28, da LD.  

Desse modo, se houve consumo imediato – não restando fragmentos aptos à realização de exame pericial – não há como incriminar o agente que apenas “participou” da relação de consumo de drogas. Vale lembrar que o laudo pericial (quanto à substância) é considerado pela doutrina como essencial à comprovação da materialidade do crime. Veja:

HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, LAVAGEM DE DINHEIRO, TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO. AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. MATERIALIDADE DELITIVA NÃO COMPROVADA QUANTO AOS DELITOS DE TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. NULIDADE ABSOLUTA. DEMAIS DELITOS. DISPENSABILIDADE. 1. A feitura e juntada aos autos do laudo toxicológico é indispensável para a comprovação da materialidade do delito de tráfico de drogas. Ao se constatar a ausência do laudo pericial da substância entorpecente, o processo deve ser anulado para que seja procedida à realização dos respectivos exames periciais e a devida intimação das partes. Precedentes. 2. O laudo de constatação provisório é suficiente para a lavratura do auto de prisão em flagrante e da oferta de denúncia, entretanto, não supre a ausência do laudo definitivo - cuja ausência gera nulidade absoluta, pois que afeta o interesse público e diz respeito à própria prestação jurisdicional. Precedentes desta Corte. 3. No caso, verifica-se que o Paciente está sendo processado pelo delito de tráfico de drogas sem a realização sequer do laudo de constatação provisório, somente tendo sido realizado o exame da aeronave onde os resquícios da droga teriam sido encontrados, restando evidenciado, assim, o constrangimento ilegal. 4. Vencida a Relatora, que entendia que se mostrava dispensável o laudo toxicológico quanto aos demais crimes imputados ao Paciente, na medida em que não constituem delitos que deixam vestígio. Habeas corpus parcialmente concedido para, quanto aos delitos de tráfico e associação para o tráfico de drogas, declarar a nulidade da denúncia e subsequente aditamento. (HC 139.231/MS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/09/2011, DJe 17/11/2011)

É obvio que o sujeito que adquiriu a droga poderá ser condenado desde que haja prova a respeito de tais condutas. É válido citar, embora se trate de um caso que abordou a questão quando da vigência da lei antiga, que o STF possui o mesmo entendimento:

ENTORPECENTES: POSSE PARA USO PRÓPRIO: INEXISTÊNCIA DO CRIME OU, DE QUALQUER SORTE, DE PROVA INDISPENSÁVEL À CONDENAÇÃO: HABEAS CORPUS DEFERIDO POR FALTA DE JUSTA CAUSA. 1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar - segundo a doutrina subjacente à lei - como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que "acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas" (Hungria). 2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso. (HC 79189, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 12/12/2000, DJ 09-03-2001 PP-00103 EMENT VOL-02022-01 PP-00193)

2.     Elemento subjetivo (tipo subjetivo)

Outra questão merece cuidado especial! Trata-se da análise do tipo subjetivo ou elemento subjetivo do crime previsto no artigo 28 da LD. Primeiramente o delito só é punido a título de “dolo”. Não há, portanto, conduta culposa. Por outro lado, a lei exige dolo específico (elemento subjetivo especial), inserto na expressão “para consumo pessoal”. Essa análise pode ser o diferencial entre o crime de tráfico (art. 33) e o de posse para consumo pessoal (art. 28). Com essa exigência o delito do artigo 28, da LD, é considerado pela doutrina um delito incongruente.

PERGUNTA: O que significa isso?

Muito simples! Crimes incongruentes são aqueles que exigem – além do elemento subjetivo –, como, in casu, o dolo, outro elemento subjetivo (elemento subjetivo especial). Nada mais que uma intenção especial do sujeito. Observe, por exemplo, o artigo 158, do CP: 

Art. 158. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de   obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:

Eis que a lei penal exige, além do dolo na conduta central outro elemento subjetivo que vai além, ou seja, que lhe é transcendental, marcado pela expressão “com o intuito de obter para si ou para outrem”.

No artigo 28, temos o mesmo, pois a lei exige, além do dolo, outro requisito: “para consumo pessoal”. O fato de a lei exigir esse “plus” é o que qualifica a conduta como um delito incongruente, justamente em razão dessa exigência a mais. Em outros casos, quando não há qualquer exigência extra, a doutrina fala em delitos congruentes, onde a adequação típica é simples e vinculada apenas a um elemento subjetivo central (dolo ou culpa), sem qualquer especial fim de agir.

3.     Tráfico (art. 33, LD) X porte para consumo pessoal (art. 28, LD)

PERGUNTA: É possível estabelecer objetivamente a diferença entre tráfico e porte para consumo pessoal? Qual ou quais os parâmetros para tanto?

A pergunta acima é de fundamental importância, principalmente tendo em vista a natureza e quantidade de penas que varia muito.

Na medida em que não existe um critério “objetivo fechado”, a lei brasileira atribui ao juiz o exame de cada situação, não obstante a classificação inicial atribuída pela autoridade policial, por força do artigo 52, I, da LD[1]. Portanto, não adotamos o critério da quantificação legal para a diferenciação entre o tráfico e o crime de porte para uso pessoal. Por esse critério há uma quantidade máxima de droga para consumo diário (uma espécie de estimativa), sendo que a partir do momento em que essa “quantidade máxima” é extrapolada o crime deixa de ser porte para consumo pessoal e passa a ser tráfico. De igual modo, pairando dúvida, essa deve ser favorável ao réu[2].

Diversos países já estabeleceram parâmetros e, assim, uma presunção relativa sobre o que poderia ser cientificamente considerado como quantidade razoável de droga para consumo pessoal (fonte: www.justica.pr.gov.br) Vejamos:

PAÍS
QUANTIDADE PERMITIDA – Maconha /Cocaína
Alemanha
De 6 a 30 g* (Maconha) / 50mg (Cocaína)
Áustria
2g (Maconha) / 1.5g (Cocaína)
Bélgica
3g (Maconha) / Não Disponível
Dinamarca
10g (Maconha)/ Não Disponível
Estônia
50g (Maconha)/ 1g (Cocaína)
Finlândia
15g (Maconha)/ 1.5g (Cocaína)
Países Baixos
5g (Maconha)/ 0.2 g (Cocaína)
Portugal
2,5g** (Maconha)/ 0.2g ** (Cocaína)

* A quantidade estabelecida pela legislação alemã varia em cada unidade federativa.
** Limites quantitativos para cada dose diária, sendo o limite temporal máximo 10 (dez) dias.


A lei brasileira, mais precisamente no artigo 28, traz um direcionamento ao juiz quando determina: “§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Mas deve se ter muito cuidado com essa verdadeira “cláusula aberta”.

Análise dos critérios legais:

a)    Natureza e quantidade da substância:

Sem dúvida esse é um critério importantíssimo, porém, não pode ser analisado isoladamente, pois é comum que traficantes parcelem, em uma infinidade de “quites”, uma enorme quantidade de drogas com o propósito exatamente de disfarçar a mercancia (tráfico).  A este respeito o STJ já decidiu que:

“CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO. REGRAS DA EXPERIÊNCIA. SUJEIÇÃO À HIPOTESE DE TRÁFICO. INVIABILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO. RECURSO PROVIDO. Estando a materialidade demonstrada com a apreensão da droga e não se negando a autoria do fato, a quantidade do entorpecente, mais de quatro quilos, a que se somam os dados acidentais e os contornos acessórios do fato, podem justificar o Juízo condenatório quando firmada a evidência de não corresponder a ação do agente, por qualquer argumento, ao uso de entorpecente. Assim, penso que o princípio “in dubio pro reo” aplicado pelo Tribunal a quo violou aquilo que se conhece por razoável, na medida em que, na espécie, não se cogita do imponderável sobre a existência do fato e da autoria, mas, ao contrário, se denota, de forma efetiva, que a conduta restou voltada para a traficância. (REsp 817.058/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 25/06/2009)

Outra questão relevante quanto ao tema da quantidade de droga, é a de que o juiz pode, quando da fixação da pena, elevar a pena base tendo em vista a quantidade de droga, ou seja, quanto mais expressiva a quantidade, maior a pena base (1ª fase de fixação da pena). Neste sentido vejamos:

SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES (TRÁFICO). ASSOCIAÇÃO / CAUSA DE AUMENTO (REFORMA). PENA-BASE (QUANTIDADE). 1. Sem dúvida que é inadmissível a reforma em prejuízo principalmente do réu/recorrente. Todavia não constitui caso de reformatio in pejus a rejeição do crime de associação e o acolhimento da causa de aumento em decorrência da associação (arts. 14 e 18, II, da Lei nº 6.368/76). Precedentes do Superior Tribunal. Posição diversa da do Relator. 2. É lícito ao juiz levar em conta a quantidade da substância entorpecente na fixação da pena, a fim de elevar a pena-base acima do mínimo. Precedentes também do Superior Tribunal. 3. Habeas corpus denegado (STJ - HC: 35795 RJ 2004/0075578-0, Relator: Ministro NILSON NAVES, Data de Julgamento: 24/05/2005, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 01.08.2005 p. 567RSTJ vol. 199 p. 596)

Mas atenção!!! Caso o juiz já tenha sopesado e levado em conta a quantidade da substância entorpecente na fixação da pena base (1ª etapa da dosimetria), não poderá fazê-lo novamente na 3ª etapa, quando estiver avaliando as causas de aumento e diminuição da pena. Isso representaria um bis in idem vedado pelo sistema.  Sobre o assunto o TJ-MT, já decidiu que:

APELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES – CONDENAÇÃO – IRRESIGNAÇÃO DA DEFESA OBJETIVANDO A ABSOLVIÇÃO ANTE A AUSÊNCIA DE PROVAS OU DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONDUTA PREVISTA NO ART. 28 DA LEI DE DROGAS – IMPOSSIBILIDADE – MATERIALIDADE E AUTORIA DO DELITO INDISCUTÍVEIS – CONTEXTO PROBATÓRIO HARMONIOSO A ATESTAR A AUTORIA DO APELANTE – RECONHECIMENTO DA MINORANTE PREVISTA NO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/2006 EM SEU GRAU MÁXIMO – VIABILIDADE – IMPOSSIBILIDADE DE VALORAÇÃO DA QUANTIDADE DA DROGA NA 1ª E NA 3ª FASE DA DOSIMETRIA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARCIALMENTE. É inviável a absolvição ou a desclassificação do delito de tráfico para o de usuário de drogas, quando as provas, sendo coerentes e seguras, convergem no sentido de mostrar que se destinavam à mercancia. Sendo o réu primário, de bons antecedentes e não havendo prova de que se dedica à atividade criminosa nem integra organização criminosa, o reconhecimento do tráfico privilegiado em seu grau máximo (2/3) é medida impositiva, nos termos do art. 33, § 4º, da lei 11.343/2006. O STF já sedimentou entendimento de que, sopesada a natureza e a quantidade da droga na 1ª fase da dosimetria da pena, não é possível novamente mensurar tais situações na análise de eventuais causas de aumento ou diminuição da pena, avaliáveis na 3ª fase dosimétrica, sob pena de bis in idem. (Ap 27912/2014, DES. ORLANDO DE ALMEIDA PERRI, PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Julgado em 28/07/2015, Publicado no DJE 31/07/2015)

Ademais, a STJ ainda admite, contrário à literalidade do artigo 33, § 2.º, “a” e artigo 33, § 3º, todos do CP, que a quantidade de drogas também pode justificar a fixação de um regime prisional inicial mais gravoso, vejamos:

PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU REVISÃO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. CONDENAÇÃO DEFINITIVA ANTERIOR. CONSUMO PRÓPRIO DE DROGAS. DESPENALIZAÇÃO. ART. 28 DA LEI N. 11.343/2006. REINCIDÊNCIA. TRÁFICO DE DROGAS. PENA INFERIOR A 8 ANOS. QUANTIDADE E NATUREZA DA SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE PARA AGRAVAR O REGIME PENAL. 1. Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia. 2. A condenação definitiva anterior por porte de substância entorpecente para uso próprio, prevista no art. 28 da Lei 11.343/2006, gera reincidência, haja vista que essa conduta foi apenas despenalizada, mas não descriminalizada, pela nova Lei de Drogas. 3. Admite esta Corte Superior que a natureza e a quantidade da substância entorpecente justificam a fixação de regime penal mais gravoso ao condenado por crime de tráfico de drogas, mesmo sendo estabelecida pena inferior a 8 (oito) anos, em observância ao art. 33, § 3º, do CP c/c art. 42 da Lei n. 11.343/2006. 4. Habeas corpus não conhecido. (HC 275.126/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 18/09/2014, DJe 03/10/2014)

b)    Local e condições da ação: 

Outro elemento que consta do § 2º, do Art. 28, da LD, diz respeito ao local e às condições da ação. Neste particular, a fim de estabelecer a diferenciação entre o tráfico e o porte para consumo pessoal, devem ser observadas todas as condições que gravitam em torno do evento, como, por exemplo, o fato de o agente ter a droga já embalada em pequenas porções, a apreensão de dinheiro em notas miúdas, são elementos que evidenciam a mercancia.

O local da ação/apreensão também é significativo. Sabe-se que o tráfico adquire grande capilaridade por meio das famosas “bocas de fumo”, geralmente estabelecidas em comunidades carentes e marcadas pela ausência de serviços públicos. Essas localidades passam a ser conhecidas como centros de distribuição de drogas. Assim, sendo o sujeito surpreendido em uma localidade dessas com grande quantidade de drogas é intuitivo que esteja traficando e não apenas portando para consumo próprio. 

c)     Circunstâncias sociais e pessoais: 

A circunstância social e pessoal do acusado também é outro fator que direciona a decisão do juiz ao julgar determinada conduta como sendo tráfico ou porte para consumo pessoal. Sobre esse ponto, Michael Mohallem tece uma crítica contundente a respeito, vejamos:

“Pesquisas mostram que as condições sociais podem determinar se o indivíduo é considerado usuário ou traficante pelos juízes. Cor da pele, condição sócio-econômica e grau de instrução parecem ser fatores determinantes. Por exemplo: uma pessoa presa num bairro nobre de uma capital recebe tratamento penal distinto daquele que é flagrado com a mesma quantidade de drogas num bairro pobre ou numa favela, por exemplo. Enquanto para o primeiro o porte pode ser visto como para uso recreativo, para o outro pode ser interpretado como forma de ganhar a vida” (www.jota.info/justiça)

De fato, o ambiente e as circunstâncias podem interferir diretamente na decisão judicial, o que recomenda muita cautela a fim de que não sejam cometidas injustiças incorrigíveis.

d)    Conduta e antecedentes do agente:

A questão é de certa forma polêmica! Há doutrinadores que não aceitam a utilização da vida pregressa do agente (antecedentes) para definição de uma dada conduta delituosa, a fim de classificá-la como tráfico ou porte para uso pessoal, pois, haveria uma espécie de culto ao direito penal do autor. Vale lembrar que direito penal do autor é uma estigmatização do agente como perigoso. Diferencia-se do direito penal do fato, que busca fundamentos no fato cometido, ou seja, na conduta praticada para condenar.

É certo que os antecedentes não podem ser utilizados com exclusividade para essa análise, mas em conjunto com outros elementos certamente vão subsidiar o magistrado no esclarecimento dos fatos.

4.     A quem compete o ônus da prova?

Diante de uma denúncia por tráfico, incumbe prioritariamente ao MP a prova da situação de tráfico. Porém, se a defesa sustentar que na verdade se trata de porte para consumo pessoal, a regra é que compete à defesa o ônus probatório respectivo, vejamos:

APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO DE DROGAS - AUTORIAS E MATERIALIDADE COMPROVADAS - CONFISSÃO SEGURA EXTRAJUDICIAL DE UM DOS RÉUS - HARMONIA COM AS DEMAIS PROVAS - RETRATAÇÃO JUDICIAL ISOLADA - IRRELEVÂNCIA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE POSSE DE DROGA PARA CONSUMO PRÓPRIO - INVIABILIDADE - CONDENAÇÕES MANTIDAS - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Não obstante a confissão policial possa ser retratada em juízo, é indispensável que ela não apenas se apresente verossímil, como ainda encontre algum amparo nos demais elementos de convicção existentes nos autos. 2. Sendo o tráfico de entorpecentes uma atividade essencialmente clandestina e crime de perigo abstrato, punindo-se a conduta de quem expõe a saúde pública a risco, não se torna indispensável prova da efetiva prática de atos de mercancia, bastando a materialidade delitiva e elementos indiciários que demonstrem a conduta dos acusados. 3. De acordo com o artigo 28, § 2º, da Lei n.º 11.343/06, para determinar se a droga destinava-se ao consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Assim, não havendo nos autos qualquer prova da exclusividade de uso da droga apreendida, sendo da defesa, e não da acusação, o ônus da prova cabal e irrefutável desta alegação de serem os réus apenas usuários, inviável falar-se em desclassificação para o delito de porte de droga para uso próprio.  (TJ-MG - APR: 10486090201154001 MG , Relator: Eduardo Brum, Data de Julgamento: 30/07/2014, Câmaras Criminais / 4ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 05/08/2014)

Contudo, ainda que seja atribuído ao acusado o ônus de provar que portava para consumo próprio, quando houver essa alegação, caso no final do processo ainda paire dúvidas a respeito da destinação da droga, deve imperar o princípio do in dubio pro reo.  





[1] Art. 52.  Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a autoridade de polícia judiciária, remetendo os autos do inquérito ao juízo: I - relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente; 

[2] APELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO DE DROGAS – SENTENÇA ABSOLUTÓRIA – RECURSO MINISTERIAL – PRETENDIDA A CONDENAÇÃO DOS ACUSADOS NAS PENAS DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS – ALEGADA A EXISTÊNCIA DE PROVAS IRREFUTÁVEIS DE QUE A SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE APREENDIDA SE DESTINAVA A MERCANCIA – INVIABILIDADE – PRESENÇA DE DÚVIDAS ACERCA DA FINALIDADE DO ESTUPEFACIENTE – IN DUBIO PRO REO – RECURSO DESPROVIDO. Tendo em vista a inexistência de prova cabal acerca da prática do tráfico de drogas pelos acusados, é impossível a prolação do édito condenatório, sob pena de violação aos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Recurso desprovido. (Ap 142341/2014, DES. PEDRO SAKAMOTO, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, Julgado em 27/05/2015, Publicado no DJE 01/06/2015)

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