[DIREITOS REAIS] Usucapião



RESENHA 09

Formas de aquisição da propriedade (usucapião):

1.     Usucapião – conceito

No dizer de TARTUCE “a usucapião constitui uma situação de aquisição do domínio ou mesmo de outro direito real, pela posse prolongada” (MANUAL, pág. 825).

VENOSA, na mesma linha de raciocínio complementa que “a posse prolongada da coisa pode conduzir à aquisição da propriedade, se presentes determinados requisitos estabelecidos em lei. Em termos mais concretos denomina-se usucapião o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficientemente prolongada sob determinadas condições” (VENOSA, 2005, p. 216).

Desse modo, a lei civil brasileira permite que a posse qualificada como “posse usucapionem”, exercida de determinado modo e por tempo certo, gere direito à propriedade.  

Vale lembrar que “posse usucapionem” se diferencia da “posse ad interdicta[1] e que situações de mera permissão ou tolerância  não induzem posse (art. 1.208, CC). De igual modo, a transferência desautorizada da posse numa relação locatícia (posse precária), não induz a “posse usucapionem”, ou seja, não é capaz de gerar usucapião. Eis um julgado interessante do TJ-MT, a respeito do tema:

RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS DE TERCEIROS - IMÓVEL URBANO CONSTRITADO JUDICIALMENTE - ILEGITIMIDADE ATIVA DOS EMBARGANTES - POSSE PRECÁRIA - IMÓVEL OBJETO DE LOCAÇÃO - AUSÊNCIA DE CONCORDÂNCIA DE SUBLOCAÇÃO DO LOCADOR - ELEMENTOS QUE INDICAM A POSSE DE TERCEIROS, COM EXCLUSÃO DO ANIMUS DOMINI - ALEGAÇÃO DE USUCAPIÃO PELOS EMBARGANTES - IMPROCEDÊNCIA - RECURSO DESPROVIDO. O sublocatário ilegítimo é mero intruso sem legitimidade para opor embargos de terceiro para suspender a execução provisória do despejo. Se os elementos dos embargos de terceiros indicam a posse dos embargantes exercida precariamente, porque oriunda de sublocação de imóvel, sem autorização do locador, não há como reconhecer a usucapião da área, em razão da ausência do animus domini. Ap, 77805/2011, DES.GUIOMAR TEODORO BORGES, SEXTA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 08/02/2012, Data da publicação no DJE 28/02/2012

·         Usucapião e bens públicos:

Em se tratando de bens eminentemente públicos, a Constituição é clara em proibir a incidência da usucapião, vejamos:

Art. 191. (...) Parágrafo único: os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.

Já os bens de sociedade de economia mista, segundo o STJ, são usucapíveis, in verbis:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA DE DEFESA. BEM PERTENCENTE A SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. I – Entre as causas de perda da propriedade está o usucapião que, em sendo extraordinário, dispensa a prova do justo título e da boa-fé, consumando-se no prazo de 20 (vinte) anos ininterruptos, em consonância com o artigo 550 do Código Civil anterior, sem que haja qualquer oposição por parte do proprietário. II – Bens pertencentes a sociedade de economia mista podem ser adquiridos por usucapião. Precedentes. Recurso especial provido. (REsp 647.357/MG, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/09/2006, DJ 23/10/2006, p. 300)

Ademais, no que se refere à natureza desses bens, há intensa discussão doutrinária. De um lado, há aqueles que advogam o entendimento de que tais bens (pertencentes às empresas públicas e sociedades de economia mista) seriam “bens privados com destinação especial” incidindo, portanto, a regra da impenhorabilidade[2].

Em que pese tal entendimento, preferimos a opinião do Professor JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO cuja tese é a seguinte: “[o] sistema de precatório é aplicável apenas à Fazenda Pública (art. 100, CF), e no sentido desta evidentemente não se incluem pessoas administrativas de direito privado, como as empresas públicas e sociedades de economia mista” MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, pág. 457).

·         Natureza Jurídica da sentença de Usucapião:

De acordo com a doutrina, a sentença proferida na ação de usucapião é meramente declaratória do direito de propriedade.

Neste sentido, vejamos a esclarecedora ementa do Resp. 118360-SP

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TÍTULO DE PROPRIEDADE. SENTENÇA DE USUCAPIÃO. NATUREZA JURÍDICA (DECLARATÓRIA). FORMA DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. FINALIDADE DO REGISTRO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. PUBLICIDADE E DIREITO DE DISPOR DO USUCAPIENTE. RECURSO DESPROVIDO. 1. Não há falar em julgamento extra petita, pois "cabe exclusivamente ao julgador a aplicação do direito à espécie, fixando as conseqüências jurídicas diante dos fatos narrados pelas partes consoante os brocardos da mihi factum dabo tibi ius e jura novit curia" (EDcl no REsp 472.533/MS, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, DJ 26.09.2005). 2. A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade; ou seja, não há transferência de domínio ou vinculação entre o proprietário anterior e o usucapiente. 3. A sentença proferida no processo de usucapião (art. 941 do CPC) possui natureza meramente declaratória (e não constitutiva), pois apenas reconhece, com oponibilidade erga omnes, um direito já existente com a posse ad usucapionem, exalando, por isso mesmo, efeitos ex tunc. O efeito retroativo da sentença se dá desde a consumação da prescrição aquisitiva. 4. O registro da sentença de usucapião no cartório extrajudicial não é essencial para a consolidação da propriedade imobiliária, porquanto, ao contrário do que ocorre com as aquisições derivadas de imóveis, o ato registral, em tais casos, não possui caráter constitutivo. Assim, a sentença oriunda do processo de usucapião é tão somente título para registro (arts. 945 do CPC; 550 do CC/1916; 1.241, parágrafo único, do CC/2002) - e não título constitutivo do direito do usucapiente, buscando este, com a demanda, atribuir segurança jurídica e efeitos de coisa julgada com a declaração formal de sua condição. 5. O registro da usucapião no cartório de imóveis serve não para constituir, mas para dar publicidade à aquisição originária (alertando terceiros), bem como para permitir o exercício do ius disponendi (direito de dispor), além de regularizar o próprio registro cartorial. 6. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 118360/SP, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2010, DJe 02/02/2011)

·         Principais características da posse usucapionem (posse que gera usucapião):

a)     Posse com intenção de dono (elemento anímico: animus domini): este elemento (como visto ao estudarmos o instituto da posse) é afeto à teoria de SAVIGNY. Nos contratos de locação ou arrendamento não há, de ordinário, esse elemento (animus domini), havendo, contudo, a possibilidade da interversio possessionis, admitindo-se a alteração da causa da posse, como, por exemplo, naquela situação em que o sujeito ocupa um imóvel por mais de trinta anos e há mais de vinte não paga os aluguéis respectivos não encontrando qualquer resistência ou oposição do proprietário-locador.

O enunciado 237, do CJF tem o seguinte teor “é cabível a modificação do título da posse – terversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini”.

A interversio possessionis, segundo melhor doutrina, poderá ocorrer até mesmo naquela situação onde havia uma relação jurídica entre o possuidor direto e o indireto, como nos casos de locação ou arrendamento (precarista). Ilustrando bem essa questão, ROSENVALD argumenta que “não se consegue perceber qualquer diferença entre o precarista e aqueles que iniciam a posse com base em atos de violência ou clandestinidade” (CURSO, pág. 159).

b)     Posse mansa e pacífica: ou seja, o possuidor, no transcurso de sua posse não deve encontrar resistência por parte de quem tenha legítimo interesse (proprietário do bem). Havendo qualquer contestação da posse por parte do proprietário, desaparece a característica em apreço.

c)      Posse contínua e duradoura: exige o sistema civil que a posse não tenha intervalos. Admite-se, como exceção, a soma dos períodos de posse (acessio possessionis), nos termos do artigo 1.243, do CC/2002: “O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e boa-fé”.

d)     Posse justa: a posse usucapível deve apresentar-se sem vícios (violência, precariedade e clandestinidade), pois numa situação fática onde estes vícios estejam presentes, de acordo com o artigo 1.208, do CC/2002, não haverá posse justa. Vale lembrar a possibilidade do convalescimento da posse (mesmo da precária);

e)     Posse de boa-fé e com justo título: em algumas situações, como veremos (usucapião ordinária) a lei vai exigir a conjugação desses dois fatores para gerar a possibilidade de usucapião.   

2.     Usucapião de bens imóveis

2.1Modalidades de usucapião de bens imóveis  

a)    Usucapião ordinária: Previsão legal: 1.242, CC:

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

O preceito em análise traz duas modalidades de usucapião. Primeiramente, no caput, temos os requisitos da usucapião ordinária regular ou comum. No parágrafo único temos a hipótese denominada pela doutrina de usucapião ordinária por posse-trabalho (também chamada de usucapião tabular), como veremos abaixo.  

Requisitos para a usucapião ordinária comum do art. 1.242, CC/2002 (caput):
Ø  Posse mansa, pacífica e ininterrupta (animus domini) por dez anos;
Ø  Justo título;
Ø  Boa-fé;  

Justo título: Qual o alcance da expressão justo título do art. 1.242, CC/2002?  O Enunciado 86 do CJF prega que a expressão deve ser interpretada de modo abrangente: “A expressão justo título contida nos artigos 1.242 e 1.260 do CC abrange todo e qualquer ato jurídico hábil em tese, a transferir a propriedade independentemente de registro”.

ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES asseveram que justo título é “o instrumento que conduz um possuidor a iludir-se, por acreditar que ele lhe outorga a condição de proprietário. Trata-se de um título que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idôneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impeça a sua aquisição. Em outras palavras, é o ato translativo inapto a transferir a propriedade por padecer de um vício de natureza formal ou substancial” (CURSO, pág. 422).

Não é outro o entendimento do STJ, senão vejamos o trecho de um acórdão em Recurso Especial:

(...) Por justo título, para efeito da usucapião ordinária, deve-se compreender o ato ou fato jurídico que, em tese, possa transmitir a propriedade, mas que, por lhe faltar algum requisito formal ou intrínseco (como a venda “a non domino”), não produz tal efeito jurídico. Tal ato ou fato jurídico, por ser juridicamente aceito pelo ordenamento jurídico, confere ao possuidor, em seu consciente, a legitimidade de direito à posse, como se dono do bem transmitido fosse ("cum animo domini"); IV - O contrato particular de cessão e transferência de direitos e obrigações de instrumento particular de compra e venda, o qual originou a longeva posse exercida pela ora recorrente, para efeito de comprovação da posse, deve ser reputado justo título;” (RESP: 171.204/GO, 2009)

Importante anotar que a expressão justo título, no sistema civil brasileiro, possui duas acepções distintas a depender do contexto em que é utilizada.

No contexto da posse, mais precisamente no artigo 1.200, do CC, fala-se em “posse justa” quando não oriunda de violência, clandestinidade ou precariedade. O Enunciado 303, do CJF esclarece que “considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”.  

Por outro lado, no contexto da usucapião (Art. 1.242), o justo título tem um conceito mais restrito, sendo considerado como tal apenas o documento apto, em tese, a transferir a propriedade (formal de partilha, instrumento particular de compra e venda, escritura pública de compra e venda).

Boa-fé: E o requisito da boa-fé? De qual tipo de boa-fé o código está se referindo? Sabemos que o na sistemática do CC/2002 temos dois tipos de boa-fé: a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva.

No contexto das modalidades de usucapião, o CC/2002 está se referindo à boa-fé subjetiva, ou seja, naquele estado subjetivo de ignorância. MHD registra que a boa-fé, mencionada no artigo 1.242, do CC, é “a convicção do possuidor de que possui o imóvel legitimamente” (CÓDIGO CIVIL COMENTADO, pág. 865).   

Requisitos para a usucapião ordinária comum do art. 1.242, CC/2002 (parágrafo único):

O parágrafo único do artigo 1.242, do CC, traz, ainda uma interessante modalidade de usucapião. Trata-se da modalidade chamada de usucapião por posse-trabalho. Para sua configuração a lei possibilita a redução do prazo previsto no caput que é de dez anos para apenas cinco anos.

Exige-se, para tanto, que o imóvel objeto do pedido tenha sido adquirido pela via do registro imobiliário (onerosamente) e que posteriormente ocorra o cancelamento do respectivo ato registral. Assim, por exemplo, se a aquisição se deu pela via da doação, não há a incidência dessa regra que, nos termos da lei, exige "onerosidade". 

Com efeito, para que ocorra a redução a norma exige um segundo requisito cumulativo. É necessário que no referido imóvel tenha sido estabelecida a moradia do possuidor ou que esse mesmo possuidor tenha realizado investimentos de interesse social ou econômico.  Esse requisito é que atribui essa nomenclatura a esta modalidade de usucapião, ou seja, posse-trabalho.

A possibilidade dessa redução no prazo para a usucapião ordinária reflete, indubitavelmente, a opção do sistema por privilegiar a função social da posse.

·         Usucapião Tabular

A modalidade prevista no artigo 1.242, parágrafo único, do CC/2002, também é conhecida por alguns doutrinadores pelo romanismo: usucapião tabular.

Isso, naturalmente, em virtude das disposições do art. 216, da Lei dos Registros Públicos, in verbis:

Art. 214 - As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta. 

§ 1.º A nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos. 

§ 2.º Da decisão tomada no caso do § 1º caberá apelação ou agravo conforme o caso. 

§ 3.º Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel. 

§ 4.º Bloqueada a matrícula, o oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio. 

§ 5.º A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel. 
  
Como cediço, nosso sistema registral (cartorial) não é dotado de presunção absoluta de veracidade, pois não acolhe o princípio da abstração da causa, como ocorre no sistema alemão[3].

É possível, por força do artigo 1.245, § 2.º que qualquer interessado, que possua legitimidade postule – em juízo – a desconstituição do registro imobiliário[4] pela existência, por exemplo, de um vício no título que serviu de base para a transcrição. Caso o vício não tenha origem no negócio jurídico subjacente, mas no próprio ato registral, como na hipótese de desrespeito aos princípios cartorários,  o artigo, em seu caput admite a invalidação independentemente de ação judicial, o que se dará administrativamente perante o juiz corregedor, após oitiva dos envolvidos.

Com efeito, há de se registrar que a presunção relativa conferida pelo sistema cartorial gera certo grau de insegurança.  

No dizer de ROSENVALD, o objetivo da norma constante do § 5.º do artigo 216, da LRP, é justamente afastar essa insegurança. Eis que o renomado autor leciona que “[e]sta situação de insegurança jurídica será afastada mediante a eficácia convalidante da usucapião tabular, cujo desiderato é sanear a titularidade aparente, com o expurgo dos vícios congênitos que maculavam a estrutura do título, de forma a preservar o registro em face do reconhecimento da usucapião ordinária” (CURSO, pág. 430).

Na verdade, a usucapião tabular acaba por excepcionar a regra da não convalidação do negócio jurídico nulo, prevista no artigo 169, do CC/2002. Eis o preceptivo:

Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”.

Pode-se afirmar com certa dose de segurança, que a alteração promovida pela Lei 10.931/1994, que modificou a redação do artigo 214, da LRP, apenas veio referendar a necessidade de ponderação de vários princípios, tais como: o princípio da confiança, da boa-fé, a teoria da aparência, a preservação da segurança jurídica, e, sobretudo a função social da posse. 

Exemplo de aplicabilidade: venda a non domino.

b)    Usucapião extraordinária

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

De maneira similar à hipótese do artigo 1.242 (usucapião ordinária), o artigo 1.238, do CC/2002, abarca duas modalidades distintas de usucapião, ou seja, a modalidade extraordinária comum presente no caput e a modalidade que prestigia a posse-trabalho com prazo reduzido.

O requisito essencial para a configuração da usucapião extraordinária é a posse mansa e pacífica, pelo prazo mencionado (15 ou 10 anos), ininterruptamente, com animus domini.

Assim, não há necessidade de provar boa-fé e justo título, tal como preconizado no artigo 1.242, já analisado.

Veja que a usucapião extraordinária dispensa a demonstração da ocupação pelo trabalho (hipótese do caput), bem como a exigência de limites máximos de terreno ou mesmo a titularidade de outros bens, ao contrário da usucapião ordinária que demanda, também, justo título e boa-fé.

No dizer da doutrina “há dois modos de possuir capazes de alcançar a usucapião: a posse simples e a qualificada. A posse simples é aquela que se satisfaz com o exercício de fato pelo usucapiente de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196, CC), conduzido-se o possuidor como o faria o dono, ao exteriorizar o poder sobre o bem. Assim, mesmo que não habite o imóvel – deixando-o sob a vigilância de um detentor –, alcançará a usucapião em quinze anos, caso satisfaça os outros requisitos. Mas, se além de demonstrada a posse, qualificar-se a ocupação do bem pela concessão de função social, por intermédio de efetiva moradia do possuidor no local ou realização de obras e serviços de caráter produtivo (parágrafo único do artigo 1.238, CC), o usucapiente será agraciado pela redução do prazo para dez anos” (ROSENVALD, CURSO pág. 414).

·         Questões processuais interessantes envolvendo as ações de usucapião. 

Primeira questão processual: 

Uma questão processual importante é a seguinte: quando um possuidor não consegue provar nos autos o elemento temporal. Esse fato reveste-se dos atributos da coisa julgada, ou seja, imutabilidade e indiscutibilidade (Art. 467, CPC)? De acordo com a doutrina não, pois o possuidor poderia ingressar novamente. Vejamos o posicionamento de NELSON LUIZ PINTO a respeito dessa questão: “se uma ação de usucapião extraordinária é julgada improcedente porque o autor não conseguiu provar o lapso temporal exigido pela lei, mas somente parte dele, posteriormente, complementado o tempo necessário, poderá ser proposta nova ação, com outra causa de pedir” (Apud ROSENVALD, CURSO, pág. 415).


Segunda questão processual: 

PERGUNTA: Mas esse prazo pode ser complementado após o ajuizamento da ação???

Nestas hipóteses, tendo em vista o artigo 462, do CPC, a jurisprudência tem se inclinado pela compreensão de que a prestação jurisdicional deverá ser concedida de acordo com a situação dos fatos por ocasião da sentença. Vejamos, neste sentido, a decisão do STJ:

É plenamente possível o reconhecimento do usucapião quando o prazo exigido por lei se exauriu no curso do processo, por força do art. 462 do CPC, que privilegia o estado atual em que se encontram as coisas, evitando-se provimento judicial de procedência quando já pereceu o direito do autor ou de improcedência quando o direito pleiteado na inicial, delineado pela causa petendi narrada, é reforçado por fatos supervenientes. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido.” (REsp 1088082/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/03/2010, DJe 15/03/2010)

Ainda no bojo do REsp 1088082/RJ temos a seguinte ponderação do relator: 

"É de se ressaltar ainda que a doutrina civilista moderna entende ser possível a declaração de usucapião quando o prazo exigido por lei se exauriu no curso do processo, verbis : 'Porém, se o prazo for completado no curso da lide, entendemos que o Juiz deverá sentenciar no estado em que o processo se encontra, recepcionando o fato constitutivo do direito superveniente, prestigiando a efetividade processual, a teor do art. 462 do Código de Processo Civil. É de se compreender que a prestação jurisdicional deverá ser concedida de acordo com a situação dos fatos no momento da sentença. Não se esqueça, por sinal, que a citação feita ao proprietário na ação de usucapião não se insere dentre as causas interruptivas da usucapião. Ora, o art. 202, inciso I, do Código Civil foi instituído em proveito daquele a quem o prazo da usucapião prejudicaria apenas nas ações por ele ajuizadas, mas não naquelas contra ele promovidas. Daí a necessidade de se outorgar eficácia jurídica ao fato superveniente, pois a lide mudou de configuração no seu curso".

No mesmo sentido: 

USUCAPIÃO ORDINÁRIO. ADIMPLEMENTO DO REQUISITO TEMPORAL DA POSSE DIRETA. ART. 462 DO CPC. Diante da fluência do prazo temporal de 20 anos durante o tramitar da ação de usucapião, consorciada à ausência de oposição à posse qualificada dos apelantes, atendido o requisito temporal, dá-se provimento à apelação para julgar procedente a ação. Exegese do art. 462 do CPC. Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70039810700, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Guinther Spode, Julgado em 14/06/2011) (TJ-RS - AC: 70039810700 RS , Relator: Guinther Spode, Data de Julgamento: 14/06/2011, Décima Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 21/06/2011)

·         Terceira questão processual: 
  
    Mas o que ocorrerá se o juiz julgar procedente uma ação petitória ajuizada pelo proprietário? Exemplo: O possuidor está na área utilizando-a como moradia pelo prazo de 8 anos. Se ao longo do oitavo ano o possuidor for citado em ação reivindicatória proposta pelo proprietário e, sendo julgada procedente a ação petitória, após o transcurso de prazo necessário para usucapir (após o 10º ano). Como ficará a situação do réu-possuidor? Se ação reivindicatória for julgada procedente, mesmo tendo transcorrido o prazo de 10 anos, não terá o réu-possuidor implementado o prazo necessário, pois nos termos do artigo 219, § 1.º do CPC “a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação”.

Pela lição de ROSENVALD o julgamento favorável ao autor da ação reivindicatória acarretará a paralisação da contagem da usucapião retroativamente à data da propositura da ação. Assim, se o retomante ajuíza ação reivindicatória ou possessória antes de o possuidor completar o lapso precricional, mesmo que a sentença procedente seja proferida após o termo final, seus efeitos já se operam à data do protocolo da petição inicial” (CURSO, pág. 418/419).

Naturalmente, essas implicações decorrem da regra do artigo 1.244, do CC/2002, in vebis:

Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”.

Vejamos uma situação muito interessante decidida pelo TJ-MT (2013) em que o retomante intentou uma ação de rescisão contratual c/c reintegração de posse dois dias antes do prazo para a consolidação da usucapião. Tal como mencionado, com a propositura da ação, ocorrerá a interrupção do prazo para usucapir na data da propositura da ação (1º, Art. 219, CPC), vejamos:

RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO DECLARATÓRIA DE USUCAPIÃO – COMPROVAÇÃO DO LAPSO TEMPORAL – REQUISITO INDISPENSÁVEL – PRESCRIÇÃO – TERMO INICIAL –  CITAÇÃO VÁLIDA – APLICAÇÃO DO ARTIGO 219, §1º DO CPC – EFICÁCIA INTERRUPTIVA QUE RETROAGE À PROPOSITURA DA AÇÃO QUE SE OPÕE AO DIREITO DO USUCAPIENTE –  AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR – INUTILIDADE CONFIGURADA – SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.
1- Aquele que ajuíza a Ação Declaratória de Usucapião visando o domínio da propriedade com força no artigo 1238 do CPC (usucapião extraordinário), deve demonstrar cabalmente os seguintes requisitos: posse mansa, pacífica e contínua pelo prazo prolongado de 15 (quinze) anos e com animus domini. No caso concreto, a Recorrente não comprovou o requisito temporal, já que não demonstrou a posse ininterrupta sobre o bem pelo período de tempo exigido.
2- A prescrição é interrompida com a citação válida; entretanto, realizada a citação, a sua eficácia retroage ao momento da propositura da ação, a teor do que estatui o artigo 219, §1º, do Código de Processo Civil. In casu, não há falar em aquisição da propriedade pela usucapião, porque a Apelada se opôs a esse direito quando ajuizou a Ação de Resolução Contratual c/c Reintegração de Posse dois dias antes de findar o prazo para retomar o bem possuído.
3- Se constatado desde o início da Ação Declaratória de Usucapião que o interessado não comprovou o lapso temporal exigido para o reconhecimento do direito pleiteado, mostra-se ausente a utilidade do feito, motivo pelo qual não há interesse de agir. Ap, 3112/2012, DESA.CLARICE CLAUDINO DA SILVA, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 19/12/2012, Data da publicação no DJE 18/01/2013

·         Direito intertemporal nas usucapiões extraordinária e ordinária:

Neste ponto, torna-se necessária a análise relativa ao período de transição do CC/1916 para o CC/2002, a fim de que possamos entender a questão do direito intertemporal que incide na hipótese. 

O novo código, aplicando a diretriz da operabilidade, reduziu os prazos dessas espécies de usucapião, regulando, no artigo 2.029, o seguinte:

“Art. 2.029. Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei 3.071, de 1.º de janeiro de 1.916.”

Criou-se, portanto, uma regra de transição em matéria de usucapião por posse-trabalho, tanto na usucapião ordinária como na extraordinária. As demais modalidades de usucapião, inclusive aquelas reguladas no caput dos artigos 1.238 e 1.242, não serão atingidas pela regra de transição em apreço, mas sim, pela regra de transição do artigo 2.028, do mesmo código.  

Dessa forma, pela redação do art. 2.029, aqueles prazos de 10 e 5 anos apenas se aplicarão após o transcurso do primeiro biênio de vigência do novo código.
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Usucapião como matéria de defesa

O professor ROSENVALD argumenta que o STF, “ao editar a súmula 237, possibilitou a arguição da usucapião em defesa nas ações petitórias e possessórias ajuizadas contra o possuidor que já completou o lapso temporal exigido em lei”.

É justamente esse o sentido da referida súmula, vejamos: “STF – 237. O usucapião pode ser arguido em defesa”.

A alegação deverá ser instrumentalizada por meio de pedido contraposto, devendo o réu atentar-se para a questão do princípio da eventualidade, alegando a usucapião na oportunidade da contestação (momento processual preclusivo).

A despeito da existência de algum nível de controvérsia na doutrina, deve ser mencionado que a própria sentença que reconheceu a viabilidade da defesa de mérito consistente na usucapião deve servir de título hábil para a transcrição cartorial.

Aliás, neste sentido, a Lei 6.969/1.981, que regula a usucapião especial rural, prescreve em seu artigo 7.º, o seguinte: “A usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no Registro de Imóveis”.

Inspirado nessa vertente, o Enunciado 315, do CJF também reafirma essa possibilidade nos termos seguintes “O art. 1.241 do Código Civil permite que o possuidor que figurar como réu em ação reivindicatória ou possessória formule pedido contraposto e postule ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel, valendo a sentença como instrumento para registro imobiliário, ressalvados eventuais interesses de confinantes e terceiros”.

PERGUNTA: Cabe reconvenção (alegando usucapião) em uma ação reivindicatória? 

A jurisprudência não tem admitido atualmente essa hipótese, vejamos: 


PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA - RECONVENÇÃO OBJETIVANDO DECLARAÇÃO DE USUCAPIÃO - RITOS PROCESSUAIS INCOMPATÍVEIS - IMPOSSIBILIDADE. A despeito de induvidosa a possibilidade de se alegar usucapião como matéria de defesa na ação reivindicatória, afigura-se descabida tal pretensão em sede de reconvenção, pelo simples e curial motivo de que o procedimento especial da ação de usucapião se revela incompatível com o rito ordinário da reivindicatória. (Agravo de Instrumento  1.0313.08.262753-7/001, Relator(a): Des.(a) Tarcisio Martins Costa , 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/08/2010, publicação da súmula em 08/09/2010)


c)         Usucapião constitucional ou especial rural ou pro labore (Art. 191, CT/88)

Essa espécie de usucapião é qualificada como “constitucional” justamente porque o cerne de sua regulação vem previsto no art. 191, do texto maior, vejamos:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

O assunto ainda é tratado no artigo 1.239, do CC/2002 e lei 6.969/1981.

Temos, portanto, como requisitos para essa modalidade de usucapião:

Ø  Área não superior a 50 hectares: Enunciado 313, do CJF “Quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir”. Esse enunciado deve ser ponderado, conforme doutrina.
Ø  Posse mansa e pacífica, com animus domini, pelo prazo de cinco anos ininterruptos: (posse qualificada);
Ø  O imóvel deve ser utilizado para subsistência da família: Assim, deve ser utilizado para agricultura, pecuária, extrativismo etc.
Ø  O possuidor não pode ser proprietário de outro imóvel: urbano ou rural.
Ø  O imóvel não deve estar localizado na área urbana: A Constituição menciona que o imóvel deve estar localizado em “zona rural”. Assim, para efeito de estabelecer essa questão, boa parte da doutrina orienta-se pelos critérios estabelecidos pelo CTN, em seu artigo 32[5]. A jurisprudência entende, de igual modo, que o imóvel não pode estar localizado em perímetro urbano, vejamos o que decidiu o TJ-MT:  “APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE USUCAPIÃO - JUNTADA DE DOCUMENTOS NOVOS - OFENSA AO ART. 397 DO CPC IMPOSSIBILIDADE - USUCAPIÃO RURAL - IMÓVEL LOCALIZADO EM ZONA URBANA - AUSENTE PRESSUPOSTO PARA DECLARAÇÃO DE DOMÍNIO - DECISÃO MANTIDA - APELO IMPROVIDO. Se as peças trazidas pela Apelante não se inserem na condição de “documentos novos”, impõe-se o desentranhamento e a desconsideração do seu conteúdo. O imóvel objeto de usucapião rural, com fundamento no art. 191 da CF, deve não só ser destinado à produção rural, como também localizar-se em zona rural, não se estendendo o benefício a imóveis inseridos no perímetro urbano. Ap, 100868/2008, DRA. CLARICE CLAUDINO DA SILVA, QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 28/01/2009, Data da publicação no DJE 10/02/2009
         
De acordo com a doutrina, essa modalidade de usucapião também é conhecida “como usucapião pro labore, teve por objetivo a fixação do homem no campo, requerendo ocupação produtiva do imóvel, devendo neste morar e trabalhar o usucapiente ou a entidade familiar” (ROSENVALD, curso, pág. 467).


Assim, situando-se o imóvel no perímetro urbano, assim definido na legislação municipal respectiva, o pedido não deverá ser aceito. 

De igual modo, a jurisprudência entende não ser possível a alteração da modalidade do pedido de usucapião no curso do processo, pois essa atitude do autor configuraria "inovação processual" não permitida. 

Neste sentido, vejamos o que decidiu o TJ-MG: "USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. IMÓVEL SITUADO EM PERÍMETRO URBANO DESDE A ÉPOCA DA PROPOSITURA DA DEMANDA. REQUISITO NÃO PREENCHIDO. MODIFICAÇÃO DA MODALIDADE DE USUCAPIÃO. IMPOSSIBILIDADE. INOVAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. 1- A ausência do preenchimento de qualquer requisito para fins de aquisição de imóvel por usucapião especial é fator impeditivo para a declaração de domínio. 2 - Sendo incontroversa a localização do imóvel usucapiendo dentro do perímetro urbano do Município, resta obstaculizada a aquisição do domínio por meio da usucapião especial rural.   (Apelação Cível  1.0352.01.003193-3/001, Relator(a): Des.(a) Francisco Kupidlowski , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/11/2009, publicação da súmula em 30/11/2009)"

Questões importantes:

·         Dada a natureza especial dessa modalidade de usucapião, a jurisprudência não admite a acessio possessiones para esta modalidade de usucapião, ou seja, não pode haver somatório de possuidores diferentes, como ocorre em geral (art. 1.243, CC/2002), vejamos:

RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO PRO LABORE - ART. 191 DA CF88 - POSSIBILIDADE DE SOMAR A POSSE DOS ANTECESSORES - NATUREZA ESPECIAL DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA - NECESSIDADE DO TRABALHO PESSOAL DO USUCAPIENTE - IMPLEMENTAÇÃO DO PRAZO DO USUCAPIÃO APÓS O AJUIZAMENTO DA AÇÃO - POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO - APELAÇÃO PROVIDA. O usucapião constitucional demanda a prova do labor rural desempenhado pelo usucapiente, não cabendo, nessa hipótese, a acessionis possesoris. Nada obsta que a prescrição aquisitiva da propriedade seja reconhecida pelo decurso do tempo necessário, ainda que após o ajuizamento da ação, uma vez que a citação na ação e usucapião não tem o condão de interromper a contagem do lapso prescricional. Ap, 30572/2010, DES. ORLANDO DE ALMEIDA PERRI, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 10/08/2010, Data da publicação no DJE 20/08/2010


u     Usucapião rural e terras devolutas: 

Outra questão interessante é a que respeita a previsão contida no artigo 2.º da Lei de regência dessa modalidade de usucapião (6.969/81). O referido dispositivo afirma ser possível a usucapião de terras devolutas, vejamos o preceptivo: "Art. 2º - A usucapião especial, a que se refere esta Lei, abrange as terras particulares e as terras devolutas, em geral, sem prejuízo de outros direitos conferidos ao posseiro, pelo Estatuto da Terra ou pelas leis que dispõem sobre processo discriminatório de terras devolutas.

PERGUNTA: Qual o conceito jurídico de terras devolutas? Maria Sylvia Zanella Di Pietro, afirma que, “pelo conceito legal, terras devolutas eram terras vagas, abandonadas, não utilizadas quer pelo poder público quer por particulares. Essa concepção corresponde ao sentido etimológico do vocábulo “devoluto” : devolvido, vazio, desocupado “ e que “excluíam-se do conceito de terras devolutas : as utilizadas pelo poder público, as que fossem objeto de sesmarias legítimas ou mesmo de sesmarias ilegítimas, porém revalidáveis, e as que fossem objeto de posse (moradia e cultivo). As demais eram consideradas devolutas” e, enfatiza, “não se pode dizer que fossem terras sem dono, porque pertenciam ao patrimônio público, que poderia vende-las ou doá-las (art. 1.º)” (PIETRO DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo : Editora Atlas, 8ª  edição, 1997) 

Estas terras, segundo entendimento da doutrina administrativista, são “bens imóveis que qualificados como públicos pela Lei n.º 601/1.850, porque na data da vigência dela, não se encontravam nem afetadas ao desenvolvimento de atividades estatais nem sob a posse privada, não receberam outra qualificação jurídica posteriormente” (MARÇAL JUSTEN FILHO, Curso, pág. 1079)[6]

Resumindo: no dizer do citado autor, terras devolutas “correspondem a bens dominicais” (pág. 1081). Bem! Se as terras devolutas são bens dominicais, isso implica dizer que são bens públicos, portanto, o artigo 2.º da Lei 6.969/1.981 não é compatível com o disposto no parágrafo único do art. 191, da Constituição que enuncia o seguinte “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Essa é a opinião corrente na doutrina, ou seja, o citado dispositivo não foi recepcionado pela Constituição de 1988.  

Atenção: O simples fato de inexistir registro imobiliário de determinado bem imóvel não induz que o mesmo seja classificado como terra devoluta, sendo necessária a prova do Estado neste sentido. 

Sobre esse tema, vejam o que decidiu o STJ: “DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. IMÓVEL URBANO. AUSÊNCIA DE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO EM FAVOR DO ESTADO DE QUE A TERRA É PÚBLICA. 1. A inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usucapião não induz presunção de que o imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva. 2. Recurso especial não provido.” (REsp 964.223/RN, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/10/2011, DJe 04/11/2011)

Em outra decisão o STJ entendeu que: 

RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO. FAIXA DE FRONTEIRA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO EM FAVOR DO ESTADO DE QUE A TERRA É PÚBLICA. 1. O terreno localizado em faixa de fronteira, por si só, não é considerado de domínio público, consoante entendimento pacífico da Corte Superior. 2. Não havendo registro de propriedade do imóvel, inexiste, em favor do Estado,  presunção iuris tantum de que sejam terras devolutas, cabendo a este provar a titularidade pública do bem. Caso contrário, o terreno pode ser usucapido. 3. Recurso especial não conhecido. (REsp 674558/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 26/10/2009)

De igual modo, o STF possui entendimento consolidado no sentido de que “Também a inexistência de transcrição da gleba em nome de particular não faz presumir que as terras sejam devolutas. (...). Conseqüentemente, o só fato de não se achar transcrito o imóvel não significa deva tratar-se de gleba devoluta. ” (RTJ 66/797, 798, Rel. Min. RODRIGUES ALCKMIN – grifei)


·  PERGUNTA: E se a implementação do lapso temporal respectivo tiver ocorrido antes da promulgação da Constituição de 1988? Nestes casos, dada a natureza declaratória da sentença que concede a usucapião, o entendimento é no sentido de que é possível a usucapião, pois à época, antes da CT/88, não havia vedação constitucional do parágrafo único do artigo 191, da CT/88. 

d)        Usucapião constitucional ou especial urbana (pro misero)

Essa modalidade de usucapião também é qualificada de constitucional em razão da previsão do artigo 183, in verbis:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

A presente modalidade também está prevista no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) e no art. 1.240, do CC/2002, e requer os seguintes pressupostos:

Ø  Posse qualificada; Aliás, aqui a pessoalidade da posse é fundamental. Não há como aplicar a presente modalidade de usucapião quando não é o respectivo possuidor quem – de fato – ocupa o imóvel;  

Ø  Imóvel localizado em área urbana (Critérios do artigo 32, do CTN), utilizado para fins de moradia; 

Ø  Área máxima: limitação de metragem (250m²) do imóvel;

Ø  O possuidor não pode ser proprietário de outro imóvel (urbano ou rural) 

Questões importantes:

·         Finalidade dessa usucapião: Essa modalidade de usucapião foi instituída a fim de instrumentalizar o direito mínimo de moradia, razão pela qual é chamado de pro misero.

·         Acessio possessionis: Não se admite, conforme previsão do Estatuto das Cidades, a acessio possessionis (geral), vejamos: “Art. 9.º (...) § 3.º: “Para efeitos desse artigo, o herdeiro legítimo continua de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão”. 

        Veja que no caso permite-se a sucessio possessionis (soma dos tempos de posse) na hipótese de sucessão mortis causa. De igual modo, o Enunciado 317, do CJF esclarece-nos que: “317. A accessio possessionis, de que trata o art. 1.243, primeira parte, do Código Civil, não encontra aplicabilidade relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade do usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente”. 

·         Necessidade de construções definitivas no imóvel: Existe o entendimento doutrinário no sentido de que deve haver acessão física sobre o imóvel, não se contentando a lei apenas com barracas ou outras formas de estruturas provisórias. Portanto, deve haver incorporação duradoura de materiais ao solo.

·         Pessoa Jurídica: A pessoa jurídica não pode pleitear essa modalidade de usucapião dada a necessidade do elemento pessoalidade.

·         E se a área for superior aos 250m²? Nestes casos, não se admite a utilização dessa modalidade de usucapião, mesmo na situação onde, por exemplo, o possuidor exercendo posse qualificada sobre área maior 800m², limite-se a pedir o reconhecimento da usucapião pro misero no que concerne aos 250m², permitidos pela Constituição. 

      A este respeito, o CJF expediu o seguinte Enunciado: “313. Quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir”. 

    Neste sentido o TJ-MT decidiu que “RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO URBANO ESPECIAL - ARTIGO 183 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - POSSE SOBRE ÁREA SUPERIOR À METRAGEM EXIGIDA - PRETENSÃO DE USUCAPIR PARTE DO IMÓVEL - PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO RECONHECIDA - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. Em se tratando de usucapião especial urbano, ultrapassando a área usucapienda o limite de 250 m², previsto no art. 183, da CF/88, impõe-se a extinção do processo, sem resolução do mérito, nos termos do artigo 267, VI, do CPC, haja vista a manifesta impossibilidade jurídica do pedido, por não comportar o dispositivo constitucional interpretação ampliativa. Inviável declaração de usucapião apenas de 250m² de área notadamente de tamanho maior, ou mesmo apenas a área da casa edificada no terreno, por consistir em parcelamento ilegal que vai de encontro com a norma constitucional.” Ap, 104695/2011, DES. SEBASTIÃO DE MORAES FILHO, QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 07/03/2012, Data da publicação no DJE 19/03/2012

·         Mais uma questão interessante. Seria possível a usucapião de área menor que 250m²? Não há óbice à aquisição de área inferior a 250, até mesmo porque a legislação de regência menciona “área de até 250m²”. Contudo, uma observação deve ser feita. Caso o plano diretor do município fixe uma área mínima de parcelamento igual ou superior a 250m² (módulo urbano mínimo), a situação é diferente. O imóvel objeto da usucapião e posterior registro não poderá desprezar a legislação de ordenação do solo. Neste sentido, o STJ decidiu que: “CIVIL - RECURSO ESPECIAL - USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - ÁREA INFERIOR AO MÓDULO URBANO - LEI MUNICIPAL - VEDAÇÃO - ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 550 e 552 DO CC/16 – INOCORRÊNCIA. 1 - In casu, como bem ressaltado no acórdão impugnado, “o imóvel que se pretende usucapir não atende às normas municipais que estabelecem o módulo mínimo local, para parcelamento do solo urbano.” (fls. 168/169), não constituindo o referido imóvel, portanto, objeto legalizável, nos termos da lei municipal. Conforme evidenciado pela Prefeitura Municipal de Socorro, no Ofício de fls. 135, o módulo mínimo para o parcelamento do solo urbano daquele município é de 250m2, e o imóvel em questão possui apenas 126m2. Ora, caso se admitisse o usucapião de tal área, estar-se-ia viabilizando, de forma direta, o registro de área inferior àquela permitida pela lei daquele município. Há, portanto, vício na própria relação jurídica que se pretende modificar com a aquisição definitiva do imóvel. 2 - Destarte, incensurável o v. acórdão recorrido (fls. 169) quando afirmou que "o entendimento do pedido implicaria em ofensa a norma municipal relativa ao parcelamento do solo urbano, pela via reflexa do usucapião. Seria, com isso, legalizado o que a Lei não permite. Anotou, a propósito, o DD. Promotor de Justiça que, na Comarca de Socorro, isso vem ocorrendo "como meio de buscar a legitimação de parcelamento de imóveis realizados irregularmente e clandestinamente. 3 - Recurso não conhecido.” (REsp 402.792/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 26/10/2004, DJ 06/12/2004, p. 316)

·         Usucapião pro família

A lei 12.424/2011 inseriu, no CC/2002, o artigo 1.240-A, como uma variante da usucapião urbana, vejamos:

“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 

§ 1º  O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez”.

Os requisitos são praticamente os mesmos da modalidade prevista no artigo 1.240, do CC/2002. A doutrina, no entanto, observa que “exige-se, para além dos pressupostos já assinalados, que o pretendente seja co-proprietário do imóvel em conjunto com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro. A disposição permitirá a aquisição da parte ideal pertencente ao seu ex-cônjuge ou companheiro que tenha abandonado o lar, tornando-se o interessado que permaneça na posse do bem seu proprietário exclusivo. Ademais, o prazo, neste caso, é sensivelmente inferior às demais espécies de usucapião contempladas no Código Civil, pois basta ao pretendente exercer a posse por um período ininterrupto de 2 anos para adquirir a fração de propriedade outrora pertencente ao seu ex-cônjuge ou ex-companheiro” (www.jus.com.br).

Observa-se, pela redação do artigo 1.240-A, que a lei exige a existência de compropriedade sobre o bem. A nova modalidade de usucapião tem a função de garantir o direito de moradia para o conjugue que, em tese, ficou desamparado, financeira e efetivamente e extinguir o condomínio outrora existente. 

·         Inconstitucionalidade do art. 1.240-A, do CC/2002

Alguns autores consideram o modelo de usucapião do artigo 1.240-A inconstitucional. Isso em decorrência da EC n.º 66/2010, que alterou o artigo 226, da Constituição da República, inciso IV (“O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”), sendo acolhido o princípio da ruptura sem qualquer questionamento acerca da eventual culpa de um ou outro consorte.

Com a possibilidade da dissolução do casamento sem qualquer questionamento a respeito do elemento culpa, estariam, em tese, revogadas todas as normas legais, inclusive o artigo 1.573, do CC/2002 que de alguma forma faziam alusão às causas da separação. 

e)        Usucapião especial urbana coletiva (Estatuto das Cidades)

O artigo 10 do Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) tem a seguinte redação:

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

Os requisitos, portanto, são:

  Ø Área urbana superior a 250m²;
  Ø Posse qualificada (com animus domini) pelo prazo de cinco anos. Para aferir a questão da posse, sobretudo no que respeita ao tempo de posse, não poderá o magistrado avaliar a situação individualizada de cada possuidor, mas terá em conta a ocupação coletiva, sob pena de inviabilizar o instituto que tem uma feição eminentemente coletiva (interesses metaindividuais).
 
·         Ø Ocupação por famílias de baixa renda: “Famílias de baixa renda” é um conceito jurídico indeterminado, ou seja, deverá ser preenchido, em cada caso, pelo Magistrado, mas há forte inclinação doutrinária no sentido de que famílias de baixa renda são aquelas que sobrevivem com até três salários mínimos;
·         Ø Impossibilidade de identificação da área de cada possuidor;
·         Ø O possuidor (adquirente) não pode ser proprietário de outro imóvel (urbano ou rural).   

ROSENVALD argumenta que essa “modalidade de usucapião se destina a inserir a população carente – ocupante de assentamentos informais – na cidade legal, regularizando áreas de ocupação coletiva já consolidada pela via de transformações urbanísticas estruturais. Pretende-se desenvolver procedimento específico para moradores de ocupações múltiplas, que poderá representar instrumento veloz e eficiente para a declaração judicial de um direito adquirido pelos possuidores devido ao uso social que deram à área ocupada, tornando-a habitação para eles e suas famílias” (CURSO, pág. 446).

Os parágrafos do citado artigo 10 trazem regras igualmente importantes:

§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.

·         Questões de ordem prática importantes:

Quem será autor da ação de usucapião coletiva? Quem detém legitimidade? O artigo 12, do Estatuto das Cidades menciona que a ação será proposta: i) pelo possuidor isoladamente ou em litisconsórcio; ii) pelos possuidores em composse. Esses dois primeiros legitimados defenderão a aquisição da propriedade com pretensão meramente individual (à exceção do pleito em litisconsórcio), pois, in casu, incide a regra do artigo 6.º, do Código de Processo Civil; iii) Pela Associação de Moradores (no caso da usucapião coletiva, art. 10), como substituto processual, desde que devidamente autorizada pelos possuidores em assembléia específica.

É possível seu ajuizamento pelo MP? Parte da doutrina entende que sim, através da “utilização do instrumento da ação civil pública, ou outra modalidade de ação coletiva, a fim de se obter medida jurisdicional, com efeito, semelhante, dado que é evidente possível se enquadrar o desenvolvimento urbano e o direito de morar como um interesse metaindividual, seja difuso, coletivo, ou individual homogêneo, dependendo da forma de construção da causa de pedir e do pedido (...)”. Aliás, argumenta o autor “que a própria Lei 10.257/01 – Estatuto da Cidade – através do seu art. 53, alterou artigos da Lei n. 7.347/85 – Lei da ação civil pública - para incluir entre as matérias possíveis de tutela da ACP, os danos à ordem urbanística (artigo 1º. III) e, ainda, via artigo 54, deu nova redação ao artigo 4º. da Lei n. 7.347/85, normatizando que "Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” (www.jus.com.br).

f)          Usucapião Administrativa (Lei 11.977/2.009)

A usucapião administrativa foi inserida em nosso sistema jurídico por meio da Lei 11.977/2.009 que disciplina também o Programa “Minha Casa Minha Vida” do Governo Federal.

De acordo com a citada lei “[a] regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 46).”

Um dos pontos mais interessantes da medida de regularização fundiária citada é a desjudicialização. A medida tem o mesmo espírito de outras leis que visam retirar tarefas do judiciário, atribuindo-as aos Cartórios.

O processo de regularização[7] tem várias etapas, a saber:

a)     Elaboração e apresentação inicial do projeto: O projeto poderá ser apresentado, nos termos do artigo 50, pela União, Estados e DF, Municípios e, ainda, pelos interessados (beneficiários), cooperativas habitacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público ou outras associações civis que tenham por finalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regularização fundiária. Vale registrar que o projeto de regularização fundiária deverá ser aprovado pelo Município (Art. 53).  

b)     Averbação da demarcação: Nos termos da Lei 11.977/2.009 a demarcação urbanística é o “procedimento administrativo pelo qual o poder público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses”;  

c)      Encaminhamento do auto de demarcação urbanística ao RGI: “Art. 57.  Encaminhado o auto de demarcação urbanística ao registro de imóveis, o oficial deverá proceder às buscas para identificação do proprietário da área a ser regularizada e de matrículas ou transcrições que a tenham por objeto”. 

d)     Notificação do proprietário e confrontantes: Art. 57. § 1.º: “O proprietário e confrontantes serão notificados pessoalmente ou fictamente para apresentar impugnação no prazo de 15 dias”;

·         Quem irá manifestar-se sobre a impugnação é o Poder Público;

·         O Oficial de Registro poderá tentar promover acordo entre o impugnante e o Poder Público. Interessante notar que, nos termos do artigo 57, § 10 “Não havendo acordo, a demarcação urbanística será encerrada em relação à área impugnada”. 

e)     Não havendo impugnação o Poder Público deverá elaborar o projeto de urbanização (art. 51) e submetê-lo ao registro no RGI.

f)       Após o registro mencionado anteriormente o Poder Público concederá título de legitimação da posse aos ocupantes cadastrados (Art. 58 § 1.º);

g)     Conversão da legitimação de posse em propriedade: “Art. 60.  Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.” 

3.     Usucapião de bens móveis

O Assunto vem tratado no artigo 1260 à 1262, do Código Civil:

Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.

Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.

Art. 1.262. Aplica-se à usucapião das coisas móveis o disposto nos arts. 1.243 e 1.244.

            Ainda de acordo com o Código Civil, bens móveis são aqueles “suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômica”, nos termos do artigo 82.

Basicamente, a lei exige para a configuração da usucapião de bem móvel a implementação dos seguintes requisitos:

Ø  Posse qualificada (com animus domini) sobre bem móvel;
Ø  Lapso temporal mínimo de três anos;
Ø  Justo título;
Ø  Boa-fé;

Esses requisitos não diferem, substancialmente, daquelas situações já estudadas por ocasião da usucapião imobiliária. Verifica-se, pelo teor dos artigos 1260 e 1261 que, igualmente, existem duas modalidades de usucapião, ou seja, a ordinária, na primeira disposição e a extraordinária na outra.

Também incidem as regras da acessio e sucessio possessionis, já analisadas por ocasião da usucapião imobiliária.

Questões interessantes sobre usucapião de bens móveis:

Usucapião de veículos:  

Veículo com alienação fiduciária transferido à terceiro. O STJ tem pronunciado a impossibilidade da usucapião em razão da clandestinidade, vejamos::

DIREITO CIVIL. USUCAPIÃO. BEM MÓVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AQUISIÇÃO DA POSSE POR TERCEIRO SEM CONSENTIMENTO DO CREDOR. IMPOSSIBILIDADE. ATO DE CLANDESTINIDADE QUE NÃO INDUZ POSSE. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.208 DO CC DE 2002. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. A transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de induzir posse (art. 1.208 do Código Civil de 2002), sendo por isso mesmo impossível a aquisição do bem por usucapião. 2. De fato, em contratos com alienação fiduciária em garantia, sendo o desdobramento da posse e a possibilidade de busca e apreensão do bem inerentes ao próprio contrato, conclui-se que a transferência da posse direta a terceiros – porque modifica a essência do contrato, bem como a garantia do credor fiduciário – deve ser precedida de autorização. 3. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 881.270/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/03/2010, DJe 19/03/2010)

Veículo objeto de furto. Embora possa parecer estranho, boa parte da doutrina considera essa possibilidade. Observa-se que para a usucapião extraordinária de bem imóvel os elementos boa-fé e justo título são dispensados. Ora, se mesmo no caso de bens de raiz (imóveis), é possível a usucapião que tenha origem na posse violenta, começando o lapso tão logo cesse a violência (art. 1.208, CC), por que negar essa possibilidade para os bens móveis? Portanto, cessada a violência começará a contagem do prazo para a prescrição aquisitiva (usucapião). O entendimento jurisprudencial é justamente nesse sentido, vejamos o que decidiu o TJ-MT:
RECURSO DE APELAÇÃO - USUCAPIÃO - BEM MÓVEL - VEÍCULO AUTOMOTOR FURTADO - POSSE SUPERIOR A CINCO ANOS - ARTIGOS 619 DO CC - JUSTO TÍTULO - BOA-FÉ - ANIMUS DOMINI RECONHECIMENTO DA AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO PELA POSSE DECLARADA - RECURSO PROVIDO - SENTENÇA REFORMADA. Consoante construção pretoriana predominante, a posse inconteste de veículo, mesmo furtado, por mais de cinco anos, conduz à sua aquisição por usucapião, dispensada até mesmo a prova de título ou da boa-fé, se o animus domini restou comprovado por seus atos de utilização do bem durante todo esse tempo como se seu fosse, inteligência do art.619, do Código Civil (atual art.1.261). Ap, 11111/2010, DRA. MARILSEN ANDRADE ADDARIO, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 16/06/2010, Data da publicação no DJE 09/07/2010
       
Não deixe de ler as notas abaixo!!!


[1] Posse “ad interdicta” é a posse que admite, em sua defesa, a utilização dos Interditos Possessórios, e um dos requisitos para a concessão será a existência da melhor posse (causa possessionis), porém não admite a aquisição da propriedade por usucapião; inexiste a intenção de ser dono, o elemento animus. Ex: posse do locatário, do depositário, do comodatário. Ao passo que a posse “ad usucapionem” caracteriza-se por ser a posse com objetivo de se adquirir a propriedade pelo usucapião. Nesta posse, encontramos os dois elementos da Teoria Subjetiva de Savigny: corpus e animus. Antes de mais nada, importante mencionar que Nosso Código Civil inclinou-se pela teoria objetiva, embora em alguns artigos pontuais faça concessões à teoria subjetiva, como ocorre na posse usucapionem.
[2] O STF não admite a penhora de bens da Empresa de Correios e Telégrafos – ECT (Correios). Vejamos o seguinte julgado: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO. OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 225011/MG 2000)

[3] Vale citar que no “sistema alemão os contratos produzem apenas obrigações. Para a transmissão dda propriedade é abstraída a causa (contrato), já que a passagem da propriedade resulta de uma segunda convenção – denominada convênio jurídico-real – realizada pelas mesmas partes perante o oficial de registro e completamente dissociada do título originário” (ROSENVALD, CURSO, pág. 363). O objetivo desse segundo contrato, de acordo com a doutrina, é o de eliminar eventual nulidade presente no contrato anterior (causa ou título do negócio jurídico), e, dado o completo desprezo pelo contrato anterior (relação subjacente), firmar presunção absoluta de propriedade em favor do adquirente.   

[4] Art. 1.245 – “§ 2.º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”
[5] Em tese, há possibilidade de utilização pelo juiz, para aferir se o imóvel está ou não em área urbana, dos critérios estabelecidos pela Lei 11.977/20, em seu artigo 47.
[6] HELY LOPES MEIRELLES ensina que as terras devolutas “são todas aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo Poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos. São bens públicos patrimoniais ainda não utilizados pelos proprietários” (DIREITO ADM. BRASILEIRO, pág. 239-240)
[7] O artigo 49, da Lei 11.977/2.009 dispõe que: “Art. 49.  Observado o disposto nesta Lei e na Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, o Município poderá dispor sobre o procedimento de regularização fundiária em seu território. Parágrafo único.  A ausência da regulamentação prevista no caput não obsta a implementação da regularização fundiária”.