[DIREITOS REAIS] Posse: Classificações da posse




RESENHA 05
CLASSIFICAÇÃO DA POSSE

1. Classificação

É extremamente importante o estudo da categorização da posse, pois a classificação da posse como de boa-fé ou de má-fé ou ainda como posse justa ou injusta provocará repercussão em diversos aspectos, notadamente no que se refere aos frutos à questão das benfeitorias, legitimação para ações possessórias, e, principalmente no que respeita à usucapião.

1.1.            Classificações comuns na doutrina:

a)     Posse direta e indireta:

Como ensina WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO “o domínio, ou propriedade compõe-se de inúmeros poderes ou faculdades, que, normalmente, acham-se reunidos na pessoa de um só titular, mas que podem também se achar esparsos e distribuídos entre várias pessoas” (CURSO, pág. 38).

É exatamente essa possibilidade, ou seja, de distribuição dos poderes inerentes ao domínio entre várias pessoas, que justifica essa classificação.

i) Posse direta: é aquela exercida por quem detém materialmente a coisa, havendo um poder físico imediato, isto é ingerência socioeconômica (poder potestativo sobre a coisa);

ii) Posse indireta: é a posse exercida por  aquele que concedeu a posse direta por força de uma relação jurídica subjacente (Ex.: Locação, Usufruto, Arrendamento, Comodato, etc.). 

Assim, o locador exerce posse indireta. 

Eis que o artigo 1.197, do CC/2002, determina o seguinte:

Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.

Ressalte-se, desde logo, o traço característico da posse direta: a transitoriedade porque ela se baseia numa relação transitória de direito. Veja que pelo artigo 1.197, do CC/2002, o possuidor direto poderá valer de ação possessória contra o possuidor indireto.

Eis uma ementa interessante do TJ-MT sobre o assunto:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - ARRENDAMENTO RURAL RESCINDIDO - PERMANÊNCIA DO ARRENDATÁRIO NO IMÓVEL - ESBULHO POSSESSÓRIO - CARACTERIZADO - PROTEÇÃO POSSESSÓRIA PLEITEADA PELO NU-PROPRIETÁRIO - POSSIBILIDADE - PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA - REJEITADA - TERMO DE RESCISÃO COM CLÁUSULA DE QUITAÇÃO GERAL DE PENDÊNCIAS - VALIDADE - INDENIZAÇÃO DE BENFEITORIAS - INCABÍVEL - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO. Pactuada a rescisão do arrendamento rural de comum acordo entre as partes, com cláusula de quitação geral de pendências mútuas, a permanência do arrendatário no imóvel caracteriza esbulho possessório, que justifica o possuidor indireto, o nu-proprietário, pleitear a proteção possessória da reintegração. A norma legal (Estatuto da Terra) estabelece os princípios do arrendamento rural, porém, não veda a manifestação de vontade das partes em contrato ou distrato, sendo válida a disposição que desobriga as partes de qualquer pendência, sendo indevidas, inclusive, à indenização por benfeitorias, pois, prevalece o que foi pactuado na rescisão do arrendamento. Ap, 79562/2008, DES.JURANDIR FLORÊNCIO DE CASTILHO, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 06/10/2008, Data da publicação no DJE 16/10/2008.  

b)     Posse justa e injusta.

Essa classificação baseia-se na pureza ou nos vícios da posse.

O CC/2002 define a posse justa, vejamos:

Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.

Assim, fazendo uma leitura inversa, a posse será injusta se derivar de violênciacladestinidade ou precariedade.

De maneira sucinta pode-se dizer que posse violenta é aquela que se adquire pela força. Diz-se posse mansa e pacífica quando não viciada pela violência.

Neste aspecto pode-se falar em violência moral?

A respeito da violência moral, CARLOS ROBERTO GONÇALVES menciona que “se a tradição pelo coacto foi feita como símbolo de transmissão de propriedade, há necessidade de anulação do negócio jurídico de transferência do domínio, para que esta deixe de valer. Todavia, se a tradição foi feita unicamente como modo de transmitir a posse, sem representar um negócio jurídico de transmissão do domínio, desde logo a posse transmitida será injusta, porque obtida por coação moral, podendo aquele que a perdeu fazer uso das ações possessórias” (DIREITO CIVIL BRASILEIRO, pág. 86).

Em outras palavras, o autor está afirmando que se o possuidor adquiriu a posse a partir de uma coação moral contra o coacto (vendedor), para que este assinasse, por exemplo, um contrato de compra e venda, deve-se, a princípio, buscar a anulação do contrato respectivo, pois o mesmo está maculado por vício do consentimento (art. 151, CC/2002, coação). Por outro lado, se a coação foi exercida apenas como meio de obter a tradição do bem, essa posse é considerada injusta desde o nascedouro.

Posse clandestina é a que se origina sub-repticiamente, ou seja, às ocultas daquele que tem legítimo interesse em conhecê-la, por exemplo, o proprietário. Já a posse pública é o contrário, pois desfrutada na presença de todos. Essa clandestinidade deve ser aferida em relação ao legítimo possuidor, pois no dizer de CAIO MÁRIO “oculta-se da pessoa que tem interesse em recuperar a coisa possuída, não obstante ostentar-se às escâncaras em relação aos demais” (INSTITUIÇÕES, pág. 28).

Posse precária é aquela que se originou de uma relação de abuso de confiança por parte de quem recebe a coisa com obrigação de restituí-la e quando chega o momento da restituição se nega a fazê-lo[1].

Deve ser frisado que mesmo a posse injusta, marcada por algum dos vícios acima apontados pode ser objeto de proteção através dos interditos (ações possessórias), não contra o seu antigo titular, isto é, aquele que perdeu a posse, mas contra terceiro que molestar o atual possuidor.

Veja, portanto, que para atribuir proteção possessória contra um terceiro (diferente daquele que perdeu a posse), a questão dos vícios acima é de somenos importância. Ilustrando: Se “A” despoja “B”, violentamente da posse de parte de um imóvel rural e posteriormente “C” tenta retirar a posse de “A”, este poderá valer-se dos meios legais para preservar a sua posse, mesmo sendo uma posse injusta na origem, pois nasceu de uma situação violenta.

Com isso, pode-se dizer que mesmo a posse injusta recebe amparo legal.

A lei fez questão de frisar, no artigo 1.208, do CC/2002 algumas situações que não autorizam a configuração da posse. Eis o dispositivo:

“Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”

Pois bem!

A análise desse dispositivo deve ser procedida em duas partes. Primeiramente, mister investigar os institutos da permissão e tolerância, e, somente após a questão dos atos violentos e clandestinos (2ª parte do texto legal).

·         Diferença entre permissão e tolerância

Qual a diferença entre a permissão e tolerância?

A permissão requer um comportamento positivo por parte do proprietário que, sem perder de vista sua vigilância sobre o bem, o entrega voluntariamente a terceiro para que este o tenha momentaneamente. A tolerância, por seu turno, é a conduta omissiva, consciente ou não do proprietário que, sem renunciar a posse expressamente, tolera a atividade de um terceiro ou não intervém quando ela ocorre. Esses atos não induzem posse porque são revogáveis pelo concedente. Exemplo: um condômino autoriza que seu vizinho utilize uma de suas garagens vagas no edifício.

O STJ decidiu uma questão interessante envolvendo a situação de tolerância por parte do poder público, em ocupação de bem pertencente a uma autarquia estadual que foi extinta. Com a extinção da autarquia os bens retornaram à pessoa jurídica de direito público respectiva, e, diante da negativa em devolver o bem imóvel, o Estado ingressou com uma medida de reintegração de posse. Na linha do que diz o art. 1.208, a decisão do STJ é a seguinte:

RECURSO ESPECIAL.  POSSE DE BEM PÚBLICO OCUPADO COM BASE EM "CONTRATO VERBAL". INVIABILIDADE. COM A EXTINÇÃO DE AUTARQUIA ESTADUAL, OS BENS, DIREITOS E OBRIGAÇÕES TRANSFEREM-SE AO ENTE PÚBLICO FEDERADO. LIMINAR EM AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE, TENDO POR OBJETO ÁREA OCUPADA, MESMO QUE HÁ MAIS DE ANO E DIA. POSSIBILIDADE. 1. Em regra, não há falar em contrato verbal firmado com a Administração Pública, sobretudo quando diz respeito a autorização para ocupação de imóvel pertencente a Autarquia, visto que, pela natureza da relação jurídica, é inadmissível tal forma de pactuação. 2. Houve a transmissão da posse do imóvel em litígio ao Estado, por força de lei estadual que extinguiu o DER-GO, transferindo os bens, direitos e obrigações da autarquia  para o Estado de Goiás,  daí que o recorrido tem mera detenção do bem. 3. O artigo 1.208 do Código Civil dispõe que "não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade". 4. Após regular notificação judicial para desocupação do imóvel, e com a recusa do detentor, passou a haver esbulho possessório, mostrando-se adequada a ação de reintegração de posse. 5. Descabe análise a respeito do tempo de "posse" do detentor, pois, havendo mera detenção, não há cogitar de "posse velha" (artigo 924 do Código de Processo Civil) a inviabilizar a reintegração liminar em bem imóvel pertencente a órgão público. 6. Recurso especial provido. (REsp 888.417/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/06/2011, DJe 27/06/2011)   

·         Análise da 2.ª parte do art. 1.208, do CC/2002

Não há posse, segundo o CC/2002, enquanto permanecer a situação de violência ou clandestinidade.

Se não há posse nesse período, ou seja, enquanto não cessados esses vícios, o que há então?

Para muitos autores, o que há neste período entre o despojamento da posse e a cessação da violência e/ou clandestinidade é detenção.

Contudo, não se trata daquela detenção mencionada no art. 1.198, do CC/2002. Aquela detenção é marcada por uma relação de dependência direta entre o possuidor e o detentor, tanto que ele é chamado de fâmulo da posse (servidor da posse).

Aqui há a chamada detenção autônomaMATHEUS STAMILLO SANTARELLI ZULIANI, em artigo específico sobre o tema, explica-nos o seguinte:

“é preciso ressaltar que existem duas espécies de detenção. Uma delas é aquela trazida pelo Código Civil, no artigo 1.198, em que se considera detentor aquele que, achando-se em uma relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. Está caracterizada a detenção dependente, podendo ser chamado também de "fâmulo da posse". Considera-se, também, detenção dependente aquela derivada de mera permissão ou tolerância. Já aquela detenção que gerou essa dúvida pertence à outra espécie de detenção, chamada de detenção autônoma ou interessada. Como bem explicou Francisco Eduardo Loureiro: Nota-se que é autônoma, mas ilícita, ao contrário dos casos de servidão da posse, de permissão e de tolerância, que são detenções dependentes, mas lícitas.” (www.migalhas.com.br).

Dessa forma, apenas depois de cessar os atos de violência ou clandestinidade é que restará configura a posse, vez que nosso código menciona, com todas as letras, que não se autoriza a aquisição da posse “os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. 

Intuitivo, pela redação do disposto no artigo 1.208, do CC/2002, que é possível convalescer aqueles vícios originários, relativizando o art. 1.203, também do CC/2002. Surge, portanto, o instituto do convalescimento da posse, também chamado de interversão ou transmutação da posse.

Frise-se: a interversão significa a possibilidade de alterar o caráter inicial da posse, não obstante o artigo 1.203, do CC/2002 mencione que: “[s]alvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”, trata-se de uma presunção juris tantum que admite prova em contrário.

Segundo doutrina clássica, o convalescimento somente é possível nos casos de violência e clandestinidade. Não sendo admitido nos casos de precariedade.  A este respeito, MARIA HELENA DINIZ, menciona em seu Código Civil Comentado (pág. 827) o seguinte: Não induzem posse os atos violentos ou clandestinos, senão após a cessação da violência ou clandestinidade. Assim sendo, se o adquirente a título violento ou clandestino provar que a violência ou a clandestinidade cessaram há mais de ano e dia, sua posse passará a ser reconhecida, convalescendo-se dos vícios que a maculavam. Já o mesmo não se dá com a posse precária, pois a precariedade não cessará jamais.”

Mas uma pergunta deve ser feita. Que tipo de posse é essa surgida após a cessação da violência ou clandestinidade? Posse justa ou injusta?

Para responder a essa pergunta, vale citar o posicionamento do professor CARLOS ROBERTO GONÇALVES “cessadas a violência e a clandestinidade, a mera detenção, que então estava caracterizada, transforma-se em posse injusta em relação ao esbulhado, que permite ao novo possuidor ser mantido provisoriamente, contra os que não tiverem melhor posse. Na posse de mais de ano e dia, o possuidor será mantido provisoriamente, inclusive contra o proprietário, até ser convencido pelos meios ordinários. Cessadas a violência e a clandestinidade, a posse passa a ser ‘útil’, surtindo todos os efeitos, nomeadamente para a usucapião e para a utilização dos interditos” (DIR. CIVIL BRASILEIRO, pág. 93).

Assim, temos que a posse que nasce do convalescimento da violência e da clandestinidade é uma posse injusta.

E a precariedade, autoriza o convalescimento?

Conforme visto pelo comentário de MARIA HELENA DINIZ, acima reproduzido, a posse precariedade não cessa jamais, ou seja, não se poderia falar em convalescimento de uma posse nestas condições.

No entanto, o posicionamento da doutrina mais atual vai noutra direção. Eis que o professor ROSENVALD menciona o seguinte: “em suma, não se consegue perceber qualquer diferença entre o precarista e aqueles que iniciam a posse com base em atos de violência ou clandestinidade. Deve-se tratar de forma igualitária aquilo que é igual. Não se justifica a quebra do princípio da isonomia constitucional, com vedação discriminatória do acesso ao possuidor precário à propriedade, pelo simples fato de um dia já ter mantido relação jurídica com o proprietário. Interpretar o artigo 1.208 do código civil em sua literalidade sem a prevalência axiológica constitucional importa preservar um caráter absoluto à propriedade, que não mais existe no sistema civil-constitucional” (CURSO DE DIREITO CIVIL, pág. 159).

Mais adiante o mesmo autor arremata “Há inovação no mundo jurídico quando o proprietário abandona a coisa e a destinação econômica passa a ser concedida pelo possuidor. Os direitos existem para serem exercidos e não apenas conservados” (CURSO DE DIREITO CIVIL, pág. 159).
Com relação a esse tema (convalescimento da posse precária), não podemos deixar de citar, igualmente, o Enunciado 237, do CJF que reafirma: “é cabível a modificação do título da posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini”.    

A conseqüência prática em admitir a possibilidade de convalescimento da posse precária é possibilitar: a) Proteção possessória; b) Acesso à posse ad usucapionem (possibilidade de adquirir o bem pela usucapião).   

Em relação ao primeiro benefício (proteção possessória), veja a interessante decisão do TJ-MT:

“APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO POSSESSÓRIA C/C PERDAS E DANOS - ARRENDAMENTO RURAL - POSSE PRECÁRIA - CONTRATO NÃO RENOVADO - PERMANÊNCIA DO ARRENDATÁRIO NA POSSE - FALTA DE PAGAMENTO DE ALUGUÉIS - ALTERAÇÃO DA NATUREZA DA POSSE - POSSIBILIDADE - IMÓVEL ALIENADO - DIREITO DE PREFERÊNCIA - FALTA DE NOTIFICAÇÃO - SUBRROGAÇÃO DO AQUIRENTE - TURBAÇÃO E ESBULHO CONFIGURADOS - VIABILIDADE DA AÇÃO - PERDAS E DANOS NÃO DEMONSTRADOS - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO - SENTENÇA REFORMADA. A natureza inicial da posse do arrendatário poderá alterar-se com o tempo conforme as circunstâncias que a exerce, especialmente econômica, tendo em conta a conduta do proprietário arrendador no exercício do seu direito. A proteção do direito de propriedade se subsume a realização da sua função social e econômica por exigência constitucional (artigos 5º, inciso XXIII, e 170 III da CF). Merece proteção a posse exercida pelo arrendatário durante vários anos sem a renovação do contrato de arrendamento e falta do pagamento de alugueis; caracterizando turbação a pretensão de retomada do imóvel pelo adquirente se não foi promovida a notificação com antecedência de seis meses para a rescisão do contrato; não foi promovida a competente ação de despejo e se, em função da alienação, não foi assegurado ao arrendatário o exercício do direito de preferência, conforme determina o Estatuto da Terra. Ap, 66674/2007, DR.JOSÉ MAURO BIANCHINI FERNANDES, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 11/08/2008, Data da publicação no DJE 18/09/2008”

No que se refere à possibilidade de usucapião, citamos os ensinamentos do Magistrado JOSÉ A. L. SANTOS, em artigo publicado em www.idb-fdul.com, nos seguintes temos: “A afirmação que parte da doutrina faz, no sentido de que a posse precária não convalesce, não é a melhor posição doutrinária, considerando-se o ordenamento jurídico em vigor.   O precarista, como definido alhures, enquanto se encontrar nessa situação, equipara-se ao detentor. E, nessa condição, os efeitos da posse lhe são estranhos não podendo se valer deles. Esta situação era coerente com a redação do artigo 487 do Código Civil revogado, o que justificava a afirmação de que a precariedade não admitia convalescimento. Após a entrada em vigor do Código Civil de 2002 a situação modificou-se. De fato, o artigo 1.198 trouxe uma inovação, no seu parágrafo único, ao permitir a realização de prova que elida a presunção de detenção. Não bastasse isso, o artigo 1.203, apesar de estabelecer que a posse mantém o mesmo caráter com que foi adquirida, admite a prova em contrário. A afirmação de que a posse precária não convalesce é uma afirmação com desvio de perspectiva (LOUREIRO, ob. cit., p. 1118). Na realidade, bem observadas as coisas, a posse precária, enquanto posse viciada, não se altera, tanto que o esbulhado pode retomar a coisa; todavia, a mudança de comportamento do precarista, pela inversão do título, permite a transformação da posse ad interdicta para posse ad usucapionem. (LOUREIRO, ob. cit., p. 1118)

Portanto, é possível concluir que a partir de uma interpretação que privilegie a função social, pose falar em interversão da posse precária. 

c)      Posse de boa-fé e posse de má-fé

A princípio, é importante registrar que para o Código Civil de 2002, existem duas espécies de boa-fé: a boa-fé objetiva e a subjetiva.

i)                   Boa-fé objetiva: prevista como cláusula geral nos arts. 113 e 442 do CC, consistente em uma norma de conduta eivada de um mínimo ético e leal (boa-fé conduta), de modo a não fraudar a confiança, as justas expectativas que os atos e negócios jurídicos despertam na contraparte;

ii)                 Boa-fé subjetiva: estado de ignorância dos vícios que atingem determinada situação jurídica (boa-fé ignorância). No caso específico da posse, é a ignorância dos vícios ou dos obstáculos impeditivos à aquisição da coisa.

O assunto vem regulado nos artigos 1.201 e 1.202, ambos do CC/2002, seguir transcritos:

Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.

Pela redação do artigo 1.201, observa-se que é extremamente importante a análise do elemento psicológico.

Daí a doutrina referi-se aos chamados vícios subjetivos, porquanto inerentes à consciência do sujeito. Na análise da posse justa e injusta, como visto, o que realmente importava eram as circunstâncias objetivas: violência, clandestinidade, precariedade, logo vícios objetivos. Porém, na classificação da posse como sendo de boa ou má-fé, o que vale é a análise da consciência do possuidor.

O que vai diferenciar uma posse de boa-fé para uma posse de má-fé é a posição psicológica do possuidor. Se o possuidor tem conhecimento do vício de origem há posse de má-fé. Do contrário, a sua ignorância se traduz em posse de boa-fé.

Uma questão interessante refere-se ao erro inescusável e a ignorância grosseira.

O erro, como se sabe, é um dos vícios do consentimento que autoriza, desde que proposta a ação no prazo decadencial de quatro anos, a declaração de nulidade do negócio jurídico (art. 178, CC). Contudo, o erro que leva a esse resultado, é o chamado erro escusável (perdoável), previsto no artigo 138, do Código Civil[2].

O mesmo raciocínio deve ser utilizado em relação à questão da posse. Com efeito, a ignorância do vício que autoriza a classificação da posse como sendo de boa-fé, de acordo com o previsto no artigo 1.201, do Código Civil, não pode ser derivada de um erro inescusável (imperdoável) ou de uma situação de ignorância grosseira.

O conceito de erro escusável (perdoável), no dizer de MARIA HELENA DINIZ, “é aquele de tal monta que qualquer pessoa de atenção ordinária ou de diligência normal (hominus medius), seja capaz de cometê-lo, em face das circunstâncias do negócio” (CÓDIGO CIVIL COMENTADO, pág. 171).

Reforçando essa ideia o professor CARLOS ROBERTO GONÇALVES aduz que “tem sido salientada a necessidade de a ignorância derivar de um erro escusável. Assim, em sintonia com a concepção ética, sublinha Silvio Rodrigues, ‘se o possuidor adquiriu a coisa possuída de menor impúbere e de aparência infantil, não pode alegar a ignorância da nulidade que pesa sobre seu título. Como também não pode ignorá-la se comprou o imóvel sem examinar a prova de domínio do alienante. Nos dois casos, sua ignorância deflui de culpa grave, de negligência imperdoável, que por isso mesmo é inalegável’” (DIREITO CIVIL BRASILEIRO, pág. 95). 

Resumindo, só persiste a boa-fé enquanto o possuidor não sabia e nem tinha como saber a respeito do vício da posse que ostenta, pois se este conhecimento estiver ao seu alcance (erro não escusável), a posse será de má-fé.

A boa-fé deve existir não apenas no momento da aquisição da posse, mas, para fins de proteção quanto aos frutos, indenização por benfeitorias, etc., o sistema exige que essa situação (boa-fé) perdure continuamente.

Dessa forma, no exato momento em que cessa a boa-fé, em razão de que o possuidor passa a conhecer o vício que contamina a sua posse, cessam também os efeitos benéficos, tais como a percepção de frutos, a indenização por benfeitorias ou o direito de retenção. Mas atenção: a posse passa a ser qualificada de má-fé sem atingir os efeitos já constituídos (efeito ex nunc), razão pela qual não deve haver, por exemplo, a devolução dos frutos já percebidos ou desconstituição de situações já consolidadas.

Pode-se dizer, então, que teremos duas situações distintas: a) a situação anterior ao conhecimento da real qualidade da posse, que não deve ser afetada (continuam sendo regulados pela posse de boa-fé); e, b) a situação posterior ao conhecimento dos vícios que será regulada pela posse de má-fé.

ROSENVALD alerta que é necessário fixar um marco para divisar essas duas situações. Assim, propõe o referido autor que “apesar da discricionariedade do dispositivo no que concerne à fixação do marco de transmudação da boa-fé em má-fé, em sintonia com as garantias fundamentais alinhavadas na Constituição Federal de 1.988, é de se entender que em geral, a boa-fé do possuidor apenas converte-se em má-fé pela citação ou algum outro modo de interpelação judicial que culmine em uma demanda que venha posteriormente validar a pretensão de quem pleiteia a restituição da coisa” (CURSO DE DIREITO CIVIL, pág. 151/152).

Assim, para esse autor, a conversão do “estado psicológico” do possuidor requer circunstâncias objetivas induvidosas.

Com essas considerações, no caso de procedência de uma ação petitória ajuizada por um proprietário contra um possuidor até então considerado de boa-fé, os efeitos da sentença retroagirão apenas e tão somente até a citação, preservando-se todas as situações já consolidadas, ou seja, durante o período de regência da boa-fé. Esse, inclusive, é o efeito para o caso da revogação das doações por ingratidão (art. 563, do CC/2002), vejamos: “A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida”.

Mas e se o possuidor tiver fundamentado a sua posse em justo título?

Primeiramente é necessário conceituar justo título, já que o código civil estabeleceu uma presunção no sentido de que o possuidor “com justo título tem por si a presunção de boa-fé”, nos termos do parágrafo único do artigo 1.201. De início, deve ser mencionado que essa presunção é relativa. Assim, admite prova em contrário no sentido de que o possuidor, apesar de ter justo título, conhecia os vícios de sua posse.

Justo título, de acordo com a doutrinadora MHD é “aquele que tem aparência de título hábil para transferir a posse ou o domínio, mas apresenta algum vício que o impossibilita de atingir tal fim” (CÓDIGO CIVIL COMENTADO, pág. 822/823). Dessa forma, justo título poderá ser um compromisso de compra e venda um contrato de locação, um contrato de comodato, ainda que tais avenças sejam verbais.

Corroborando essas assertivas, o ilustre doutrinador TITO FULGÊNCIO enuncia que “emprega a lei a palavra “título” para designar: a) a causa eficiente, o princípio gerador do direito; b) o instrumento do contrato ou do ato jurídico, o ato exterior probatório; c) qualidade e assim se diz – a título de herdeiro, ou qualidade de herdeiro”; portanto, “não é no sentido material que o título é tomado no código, senão no de causa eficiente da posse, no da qualidade com que o individuo figura na relação de fato” (DA POSSE E DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS, pág. 42, vol. I).

Na mesma linha de raciocínio, importantes as observações de JOEL DIAS FIGUEIREDO JR., quando afirma que justo título “há de ser compreendido, antes de mais nada, desvinculado da idéia de documento, tendo-se em conta que posse é situação pertencente ao mudo fático, destacada, portanto, do mundo jurídico. Assim, a concepção de justo título deve estar ligada àquela de causa ou modo de aquisição eficiente da posse (causa possessionis). Todavia, isso não significa que não possa estar representado por um título (documento)” (NOVO CC COMENTADO, pág. 1102).

Justo título, portanto, é o que seria hábil para transmitir o domínio e a posse se não contivesse nenhum vício impeditivo dessa transmissão, como por exemplo: i) uma escritura de compra e venda efetivada por quem não tinha o domínio (a non domino); o negócio realizado com um menor sem a devida representação.

Efeito interessante em relação ao justo título é a inversão do ônus da prova. A partir do momento em que o possuidor alega possuir justo título, transfere-se à parte contrária o ônus quanto à prova de que o possuidor estava ciente de não ser justa a posse.
   



          

  





NOTAS: [1] RECURSO DE APELAÇÃO - AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE - CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL - TERMO FINAL - NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL - RECUSA - POSSE PRECÁRIA - REQUISITOS LEGAIS NÃO PREENCHIDOS - 927 DO CPC - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO. Alcançando o contrato de arrendamento seu termo final, e tendo sido os arrendatários devidamente notificados a desocuparem o imóvel e recusando a fazê-lo, resta configurada a posse precária, o que afasta a tutela possessória (CPC, art. 927). Ap, 1858/2011, DES.JOÃO FERREIRA FILHO, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 07/03/2012, Data da publicação no DJE 16/03/2012
[2] Neste sentido, “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO POR ERRO. VÍCIO NÃO DEMONSTRADO. REQUISITO DA ESCUSABILIDADE, ADEMAIS, INEXISTENTE. RECURSO DESPROVIDO. "Como todo o direito sustenta-se em fatos, aquele que alega possuir um direito deve, antes de mais nada, demonstrar a existência dos fatos em que tal direito se alicerça. Pode-se, portanto, estabelecer, como regra geral dominante de nosso sistema probatório, o princípio segundo o qual à parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito, incumbe o ônus de demonstrar sua existência. Em resumo, cabe-lhe o ônus de produzir a prova dos fatos por si mesmo alegados como existentes" (BAPTISTA, Ovídio. Curso de processo civil. v. 1. 4ª ed. São Paulo: RT, 1998, p. 344). Conforme ensina a doutrina majoritária - em posicionamento adotado pelo Novo Código Civil (art. 138) - somente vicia o negócio jurídico o erro escusável. É dizer, incidindo o contraente em erro por negligência, imprudência, imperícia ou desleixo a ele imputáveis, prevalece o interesse social à segurança dos negócios em detrimento ao interesse meramente individual do contratante desatento em anular a desastrosa avença” (Apelação Cível – TJ-SC 2003.005350-6)