FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE [Resenha 03 - 2013/2]


RESENHA 03

A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

1. Direito civil constitucional

O direito civil atualmente deve ser interpretado e aplicado tendo em vista a nova ordem constitucional.

Embora possa parecer, a princípio, um paradoxo; o direito civil – complexo normas que regulam o direito privado – não pode ser estudado de maneira dissociada da Constituição (direito público).

Fala-se, então em Direito Civil Constitucional como fruto de uma visão unitária do ordenamento jurídico. Portanto, há uma latente unidade na ordem jurídica, ou seja, uma completa interação entre o Direito Privado e a Constituição.

Esse novo marco teórico deve, necessariamente, perpassar por três princípios básicos, a saber:

a) Proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CT/88), núcleo axiológico da CT/88; passa-se para a visão de Kant “personalização do direito civil” em contraposição à patrimonialização do código civil de 1916;

b) Solidariedade social; outro objetivo fundamental da República, conforme art. 3.º, I, da CT/88. E, ainda, art. 170 “ditames da justiça social”;

c) Igualdade (art. 5.º) “A lei deve tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais” (igualdade substancial de RUY BARBOSA) em contraposição à igualdade meramente formal.

Assim, o direito civil constitucional revela-se na tríade: diginidade-personalidade-iguladade.
Neste sentido, vejamos a importante conclusão GUSTAVO TEPEDINO:
"(...) O desafio do jurista de hoje consiste precisamente na harmonização das fontes normativas, a partir dos valores e princípios constitucionais. O novo Código Civil deve contribuir para tal esforço hermenêutico – que em última análise significa a abertura do sistema –, não devendo o intérprete deixar-se levar por eventual sedução de nele imaginar um microclima de conceitos e liberdades
patrimoniais descomprometidas com a legalidade constitucional. Portanto, o Código Civil de 2002 deve ser interpretado à luz da Constituição, seja em obediência às escolhas político-jurídicas do constituinte, seja em favor da proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundante do ordenamento." (Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004)

Essa nova percepção do direito civil refletiu no instituto da posse, razão pela qual a posse deve ser vista atualmente como instrumento de dignidade. Alias, a posse é uma forma de concretizar o direito social de moradia (art. 6º, CT/1988).

A CT/1988 proclama a função social da propriedade. A propriedade sem função social é entendida como abusiva (abuso de direito, art. 187, CC/2002).

Influências históricas dos códigos de 1916 e 2002:
Código Civil de 1916
Código Civil de 2002
I) Liberalismo; 
II) Individualismo econômico;
III) A propriedade é o “grande” direito
I) Socialidade
II) Boa-fé
III) Operabilidade

  2. Função social da posse.

Não se discute a função social da propriedade, até mesmo porque está instrumentalizada direitamente na CT/88 (Art. 5º XXIII e 182). A função social da posse, não obstante a ausência de lei específica[1], ou mesmo de uma reforma no CC/2002, deve ser implicitamente reconhecida pelo sistema.

Para comprovar sua presença, mesmo que implícita, vejamos os artigos do CC/2002[2]:

1) Art. 1.238 (...) Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

2) Art. 1.242 (...) Parágrafo único: Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

De igual modo, o artigo 1.228, §§ 4º e 5º, consagra a desapropriação judicial privada por posse trabalho, valorizando assim o trabalho.

Com tais considerações, pode-se concluir que o conceito de posse do art. 1.196, do CC/2002, é incompleto, ao passo que nada menciona a respeito da função social da posse, razão pela qual deve ser feita uma re-leitura do instituto à luz dos princípios acima mencionados e dessa nova visão do direito civil constitucional.

Por outro lado, função social é um conceito jurídico indeterminado. Quem irá dizer que a propriedade está ou não está cumprindo a função social é o aplicador do direito.

2.1. Não cumprimento da função social pelo proprietário. Conseqüências jurídicas.

Análise do art. 1.228 § 4.º e 5.º, do Código Civil (2002):

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

Esse dispositivo reflete bem o novo perfil do instituto da posse. MIGUEL REALE, pai no NCC, enfatizou que a natureza jurídica desse dispositivo é a seguinte: “desapropriação judicial no interesse privado”.

Logo após a publicação do NCC/2002, onde consta a referida modalidade de desapropriação, algumas afirmaram que o dispositivo era inconstitucional, pois somente a Constituição poderia, em tese, prever hipóteses expropriatórias[3].

Essa nova hipótese de desapropriação é conduzida diretamente pelo judiciário[4], sem interferência, portanto, do Executivo, como ocorre no Direito Administrativo[5].

Compete ao juiz o preenchimento dos conceitos jurídicos indeterminados[6] que a norma enuncia.

A doutrina entende que o dispositivo não é inconstitucional. Neste sentido, o ENUNCIADO 82, CJF, determina: “É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil.

Questões processuais importantes:

(i) Esses parágrafos (4.º e 5º) do artigo 1.228 tornam a ação reivindicatória de natureza dúplice, pois permite que os possuidores formulem, na própria contestação, uma espécie de pedido contraposto (equivalente à reconvenção do processo civil).

(ii) A alegação de posse coletiva poderá ser efetivada tanto em sede de ação reivindicatória, como também em sede de reintegração de posse perpetrada pelo proprietário. Neste sentido, o Enunciado 310 do CJF “[i]nterpreta-se extensivamente a expressão ‘imóvel reivindicado’ abrangendo pretensões tanto no juízo petitório quanto no possessório”.

(iii) A própria coletividade será considerada possuidora e não apenas os sujeitos (pessoas físicas) individualmente. Aliás, o CJF aprovou o seguinte Enunciado “236. Considera-se possuidor, para todos os efeitos legais, também a coletividade desprovida de personalidade jurídica”.

(iv) O juiz não pode conhecer de ofício dessa matéria, pois as partes podem optar pela usucapião coletiva do Estatuto da Cidade[7];

A hipótese poderá ser utilizada em casos de imóveis dominicais? A doutrina entende que sim. Aliás, há enunciado do CJF neste sentido: “304 – Art.1.228. São aplicáveis as disposições dos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil às ações reivindicatórias relativas a bens públicos dominicais, mantido, parcialmente, o Enunciado 83 da I Jornada de Direito Civil, no que concerne às demais classificações dos bens públicos.”

Perguntas a respeito dessa modalidade de desapropriação judicial:

1)    Quem deve pagar a indenização mencionada no § 5.º, do art. 1.228 do CC/2002?

Pela literalidade do CC, os possuidores! Nos casos de possuidores de baixa renda a doutrina entende que o Poder Público[8] deve efetivar o pagamento, sendo que a indenização deve ser fixada em moeda corrente e não em títulos da dívida pública. Neste sentido, o enunciado 308 do CJF: “A justa indenização devida ao proprietário em caso de desapropriação judicial (art. 1.228, § 5°) somente deverá ser suportada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual. Não sendo os possuidores de baixa renda, aplica-se a orientação do Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil”.[9]

Com efeito, sendo o caso de pagamento pelo Poder Público, nada mais razoável que a Municipalidade ou a União, a depender do caso, sejam citadas para integrar a lide. A convocação do Poder Público poderá partir do Autor da ação possessória ou reivindicatória, via denunciação da lide.

2)    E se os possuidores forem pessoas com razoável poder aquisitivo?

Nestes casos, a doutrina propõe uma conversão do instituto da desapropriação judicial para aaquisição compulsória onerosa.

ROSENVALD ensina que “[n]estas hipóteses, não incidiria propriamente uma desapropriação indireta promovida pelo juiz, e sim a criação de uma obrigação alternativa de dar quantia certa – aquisição compulsória onerosa –, a  cargo dos devedores” (CURSO, pág. 86).

3)    Como será paga a indenização?

A indenização – seja ela decorrente de uma desapropriação judicial ou aquisição compulsória onerosa – deve ser procedida em dinheiro e não através de títulos da dívida pública. Mas atenção: a indenização não será aferida tendo por base as obras (ascensões físicas) realizadas pelos possuidores, mas tão somente uma estimativa justa pelo valor do imóvel. 

4)    E se os possuidores não pagarem a indenização? Seria esse fato capaz de prejudicar a pretensão possessória da coletividade?

Não! A ausência de pagamento da indenização não pode prejudicar o resultado da demanda. Assim, caso configurados os requisitos do artigo em comento, o proprietário terá sua reivindicatória ou possessória julgada improcedente, mesmo que os possuidores não tenham pago o valor da indenização. Pode parecer ilógico, mas o raciocínio inverso iria contra a própria função social que é reconhecida no instituto. A pretensão reivindicatória do proprietário será julgada improcedente em razão de que ele descumpriu um mandamento constitucional (Art. 5.º, XXIII). Assim, a eficácia da norma contida no § 4.º do art. 1.228, do CC/2002, independe do pagamento. Porém o registro da propriedade em nome da coletividade será obstado. Neste sentido, o Enunciado 241, do CJF: “Art. 1.228: O registro da sentença em ação reivindicatória, que opera a transferência da propriedade para o nome dos possuidores, com fundamento no interesse social (art. 1.228, § 5º), é condicionada ao pagamento da respectiva indenização, cujo prazo será fixado pelo juiz.”.

Isso nos leva à conclusão de que o proprietário que teve sua reivindicatória julgada improcedente deve se esforçar para receber o montante fixado a título de indenização, sob pena de prescrição.

Essa é a conclusão do CJF, no Enunciado 311 “Caso não seja pago o preço fixado para a desapropriação judicial, e ultrapassado o prazo prescricional para se exigir o crédito correspondente, estará autorizada a expedição de mandado para registro da propriedade em favor dos possuidores.

5)    A pretensão contida no § 4.º do art. 1.228, do CC/2002 poderá ser exercida via ação, ou somente via pedido contraposto na reivindicatória?

De acordo com o CJF “O conteúdo do art. 1.228, §§ 4º e 5º, pode ser objeto de ação autônoma, não se restringindo à defesa em pretensões reivindicatórias.” (Enunciado 495, CJF)

NOTAS E REFERÊNCIAS




[1] ROSENVALD adverte que “a ausência de regramento no direito privado em nada perturba a filtragem constitucional sobre este importante modelo jurídico, pois o acesso à posse é um instrumento de redução de desigualdades sociais e justiça distributiva” (CURSO, pág. 78).

[2] De igual modo, pode ser percebida a importância que o CC/2002 confere à função social da posse nos artigos 1.255, 1.258 e 1.259 ao instituir a aquisição compulsória da propriedade em razão do cumprimento da função social da propriedade.

[3] ROSENVALD traz a seguinte lição “[d]e fato a desapropriação-sanção (referindo-se àquelas previstas na CT) é modalidade especialíssima de expropriação, e não poderia ser aplicada fora dos estreitos limites concedidos pela Constituição Federal. Contudo, é mister acreditar que o legislador instituiu uma nova modalidade de desapropriação por interesse social, pois a norma concede ao juiz o poder de concretizar conceitos jurídicos indeterminados e verificar se o interesse social e econômico relevante de uma coletividade de possuidores apresenta merecimento suficiente para justificar a privação de um direito de propriedade” (CURSO, pág. 80)

[4] Embora possa parecer novidade, a verdade é que o CC/2002, e também o revogado já dispunha de medida semelhante no artigo 1.285: “O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.

[5] Da exposição de motivos do CC/2002 colhe-se a seguinte justificativa “abre-se, nos domínios do Direito, uma via nova  de desapropriação que se não deve considerar prerrogativa exclusiva dos Poderes Executivo ou Legislativo. Não há razão plausível para recusar ao Poder Judiciário  o exercício do poder expropriatório em casos concretos, como o que se contém na espécie analisada”.

[6] Conceitos jurídicos indeterminados são “Conceitos vagos ou indeterminados são expressões contidas no texto legal cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos, permitindo certa largueza na tarefa de ‘subsunção’ do fato à norma. São, assim, ‘solução intencionalmente desejada, pelo Legislador, ao estabelecer que o destinatário-aplicador da norma realize juízo  jurídico de valor” (ARRUDA ALVIM, RT 1988, pág. 31)

[7] Estatuto das Cidades: “Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

[8] Município quanto às áreas urbanas e União quanto às áreas rurais (ROSENVALD, Curso, pág. 83)

[9] Enunciado 84 CJF – “Art. 1.228: A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização”.